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Omar Fontana: o cavalheiro gigante


2001 marca o início de um novo milênio. Mas por ironia do destino - ou talvez, por trágica coincidência - em menos de 7 meses a aviação brasileira perdeu seus últimos gigantes: Omar Fontana e Rolim Adolfo Amaro.

Tive o privilégio de conhecê-los bem, trabalhando em diferentes fases com ambos.

Cada um ao seu estilo, marcaram época e escreveram brilhantes páginas em nossa aviação. Muito se falou de suas perdas. A mídia já cobriu todos os aspectos de suas brilhantes vidas. Portanto vou escrever um pouco de casos e passagens que tive a honra de vivenciar junto à eles.

Omar Fontana, o Cavalheiro Gigante

O título não é meu, e sim de R. E. G. Davies, em seu excelente livro Rebels and Reformers of the Airways (Paladwr Press). Foi assim que o notável historiador da aviação comercial dedicou um capítulo de sua obra ao perfil de Omar Fontana.

Gigante pelo que fez em vida e em tamanho também: Com mais de 1,90m e mãos de lenhador, o comandante Omar impunha respeito à distância. De perto também: sua voz tonitroante não deixava dúvidas de quem estava "no comando". Coisas desse capricorniano, nascido à 7 de janeiro de 1927, "um pouquinho mais sênior que a Varig", como costumava dizer. Para os recordes, a Varig é de 27 de Maio de 1927.

Sim, a pioneira Varig, nêmesis e paradoxo de Omar em toda a sua vida. Foi contra quem mais lutou, brigando para manter viva e fazer crescer sua Sadia e depois Transbrasil, na dura, muitas vezes desleal, competição imposta pela empresa gaúcha.

Omar sempre reconheceu na "gaúcha" os méritos dos excelentes serviços então prestados pela empresa. Mas sempre foi crítico feroz do que considerava "monopólio de exploração das linha internacionais". Argumentava que os interesses do público viajante só seriam de fato respeitados caso houvesse "liberdade de escolha ao se viajar para o estrangeiro".

Por isso, lutou bravamente para ver sua Transbrasil voando além mar.Finalmente, em 1984, começaram os vôos charter para Orlando, Flórida, nos então moderníssimos 767 que sua empresa tivera a primazia de trazer para céus brasileiros.
Com estes aviões, a sempre sonhadora figura do Comandante vislumbrou dar a volta ao mundo, ligando o Brasil à Beijing, tanto via Pacífico como via Europa. De fato, em 1995 a Transbrasil chegou a fazer um vôo de experiência para a capital chinesa.

Sim, sonhar e enxergar longe foram características de Omar desde cedo. Fascinado desde garoto por aviação, economizava a mesada que recebia de seu pai, Attilio Fontana, para pagar aulas de vôo no Campo de Marte. Chegou a empenhar uma enciclopédia e a vender um carro para sustentar seu curso. Brevetado, não parou mais. Trouxe o primeiro DC-3 em 1955, para transportar para São Paulo carnes frescas da Sadia, empresa fundada por seu pai. Nascia a Sadia Transportes Aéreos.

Omar era um apaixonado pela aviação, mas sobretudo pelos aviões. Fazia questão de pilotar pessoalmente em todas as vezes que viajava a trabalho nos aviões da companhia.

Lembro-me particularmente do primeiro vôo que fiz no jump seat, atrás do comandante.
Era 10 de janeiro de 1981, Omar comandava o 727-100 PT-TCB num vôo noturno de Congonhas para o Galeão. Trazendo o Boeing nas mãos, o comandante na curta final, começou a sussurrar, falando com a aeronave: "isso, isso, assim, assim" Segundos depois, o TCB tocou o solo de forma tão suave que, assim que o ruído dos reversores diminuiu na cabine, ouviu-se claramente os aplausos dos passageiros lá atrás.

Um dia, comentei com ele esse vôo e disse-lhe que ele parecia estar falando com uma mulher, não com uma máquina. Sua resposta foi definitiva, e perfeita para definí-lo: "Gianfranco, aviões na língua inglesa pertencem ao gênero feminino. Trata-se uma aeronave pelo pronome "she". Portanto, devemos tocar os aviões exatamente como tratamos uma mulher: com doçura, mas com firmeza."

De fato, Omar foi um grande cavalheiro. Um homem que, mesmo longe dos padrões helênicos de beleza, sabia ser extremamente cativante e sedutor, sobretudo com as mulheres. Ajudava também ser exímio pianista. Nos longos stop-overs e em viagens de trabalho, sentava-se ao piano de hotéis e bares e tocava até altas horas. Feito de ferro, no dia seguinte estava às 05:30, horário de Brasília, ligando para a coordenação de vôos da empresa, para saber se a "aviação estava no horário". Um detalhe: pelos mais de 40 anos que fez isso todo santo dia, sua voz de trovão começava a chamada assim: ALÔ! Ah, bom dia, aqui quem fala é o Comandante Omar. Como se mais alguém com voz de trovão ligasse diariamente às 05:30.

Omar sabia disso e no fundo, se divertia. Foi sempre uma pessoa que teve imensa energia e alegria de viver. O esporte, além da música, foi outra grande paixão, sobretudo o vôlei e nos últimos anos, o tênis. Visionário, foi pioneiro também na parceria empresa-esporte. Ainda nos anos 70, montou o time Transbrasil de Volley, patrocinando os atletas, numa época que marketing esportivo mal engatinhava. Por sinal, instintivamente tinha ume excelente "faro marketeiro". Nos pre-históricos anos 70, inovou em produtos e serviços. Foi o primeiro a servir feijoada a bordo, todas as quartas e sábados. Pintou os aviões da empresa com cores alegres e chamativas, fato pouco comum então. Criou um novo conceito de serviço de bordo, ao criar as "Anfitriãs do Ar", verdadeiras chefes de serviço cuja função era supevisionar o trabalho da equipe. De madrugada, quando os aviões paravam, teve a idéia de utilizá-los para transportar malas postais, criando a RPN, Rede Postal Noturna.

Por fim, um dos traços mais marcantes de sua colorida personalidade foi a paixão absoluta que sempre teve pela causa conservacionista. Desde cedo, defendeu nossa fauna e a flora, sendo nomeado presidente honorário da Associação Brasileira de Preservação da Vida Selvagem. Virou até nome de passarinho, homenagem de seu amigo e eminente ornitólogo Johann Dalgas Frisch.

Seu vôo final foi em 7 de dezembro de 2000. Não viu por pouco chegar o terceiro milênio, que tantas vezes enchera sua cabeça de sonhos.

Dizia: "meu grande sonho seria poder ser filho do meu neto". Uma personalidade multi-facetada, apaixonante, porém difícil, mercurial, que pode ser ilustrada com esta passagem de uma de nossas muitas viagens de negócios. Eram sete horas da manhã. No coffee shop do hotel em Shannon, Irlanda, encontro o comandante visivelmente irritado. Bom dia comandante, disse eu. Ele respondeu com um rosnado. Permaneceu calado por mais alguns instantes, até que eu lhe perguntei: algum problema? Ele pensou um pouco e me disse, sério: "Sim. Faz mais de quatro dias que não dou um esporro em ninguém!". E abriu um discretíssimo sorriso.

Esse foi Omar Fontana.

Um homem único, cheio de virtudes e como qualquer mortal, de defeitos. Até porque, para que possa brilhar no céu o arco-íris, é preciso que haja um pouco de chuva também.

(Gianfranco Beting)

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