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Viscount: um lorde inglês


O Vickers Viscount foi a primeira aeronave a utilizar-se da tecnologia de turbo-hélice como fonte de propulsão. Movido pelas turbinas Dart, da Rolls Royce, a aeronave produzia um ruído mais fino, que se traduzia em maiores velocidades que as aeronaves movidas a pistão que ele viria a substituir. Um tremendo sucesso no mundo todo, inclusive no Brasil. Sua longa carreira de mais de 50 anos é abordada agora no jetsite.

Um novo som nos céus

Pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial surgiu na Inglaterra o Comitê Brabazon, chefiado pelo Lorde Brabazon of Tara, que presidia o grupo de estudos formado no pós-guerra para supervisionar e coordenar os esforços de desenvolvimento de novas aeronaves na Grã-Bretanha.

Entre os diversos requerimentos, um deles foi conhecido por Type 2, destinado a substituir os DC-3 em serviço nas linhas continentais da Europa. O escopo incial de operaçnao demandava uma aeronave dcom 20 assentos, não pressurizada, capaz de voar 2.800km a pelo menos 320km/h. Depois, o comitê refinou o pedido, criando os sub-tipos 2A (que viria a se tranformar no Airspeed Ambassador) e no tipo 2B, que com vários melhoramentos, deu origem ao Viscount.

Rex Pierson, engenheiro-chefe da Vickers, um enorme conglomerado industrial inglês que construía de locomotivas a navios e aviões, já pensava num sucessor ao Viking, uma aeronave comercial produzida pela empresa. Este novo avião era conhecido internamente como VC2 (Vickers Commercial 2), pois após o Viking, seria o segundo produto da empresa no promissor campo da aviação comercial do pós-guerra.

Em junho de 1945 os primeiros esboços foram apresentados. Tratava-se basicamente de um Viking quadrimotor, tão desajeitado quanto seu antecessor. Com 24 lugares, voaria a 478km por hora com 1.674km de autonomia e peso máximo de decolagem de 11.113kg. Mas apresentava desde então a combinação que tornou a aeronave uma campeã: seria movida por quatro Rolls Royce Darts, o espetacular motor turbohélice que embora estivesse no início de seu desenvolvimento, seria usado até os dias de hoje com enorme sucesso.

Em março de 1946, o desenho básico da aeronave estava pronto, quando o Ministério de Suprimentos de Sua Majestade assinou um contrato para desenvolvimento e construção de dois protótipos do VC2, com capacidade para até 28 lugares. Foi quando entrou em cena a primeira empresa interessada na nova aeronave.

A British European Airways (BEA) era a estatal designada para as rotas de etapas médias, sobretudo Européias. A empresa queria um avião maior, para 32 passageiros. A Vickers acedeu e o projeto passou a ser chamado de Type 609 Viceroy. A indústria britânica sempre favoreceu dar nomes aos seus aviões, normalmente começando com a mesma letra do fabricante. Viceroy era o título usado pelo governante supremo na Índia, ainda uma Colônia Britânica. Em 1947, com a Independência da Índia, um nome mais politicamente correto teve de ser escolhido. Nasceu então o Viscount, cujo primeiro vôo foi realizado em 16 de julho de 1948.

Crescendo e aparecendo

O desenvolvimento básico prosseguia em paralelo ao surgimento de versões mais potentes dos Dart, que permitiram o aumento da fuselagem, da carga paga e da autonomia. Em 29 de julho de 1950, o protótipo G-ARHF decolou de Northolt com destino a Le Bourget, transportando 12 convidados e 14 passageiros pagantes: foram os primeiros passageiros da era da turbina.

O exemplar de pré-produção, da série 700, teve sua fuselagem aumentada para acomodar até 40 passageiros (na época) embora anos mais tarde, comumente trasnportasse 63 pax em configuração de alta densidade. Matriculado G-AMAV, fez seu primeiro vôo em 28 de agosto de 1950 e atraiu imediato interesse da British European Airways, que encomendou 20 e subsequentemente tornou-se a maior operadora do tipo, chegando a operar com 70 aeronaves das diferentes versões.

Dessa primeira série produzida, surgiram diversas sub-variantes que identificam a empresa compradora, começando pela Série 701 até a 798. O primeiro a ser entregue à BEA, o V701 G-ALWE, voou pela primeira vez em 20 de agosto de 1952 e foi entregue em janeiro de 1953. Os primeiros serviços regulares começaram em 18 de abril entre Londres, Roma, Atenas e Larnaca, Chipre.

Um nobre em serviço

Nesta época, as qualidades do Viscount já haviam se tornado tão evidentes qua as encomendas já chegavam a 300 unidades. A grande diferença do Viscount em relação a todos os outros aviões comerciais britânicos até então foi que o modelo conseguiu sucesso comercial nos Estados Unidos. A primeira grande compra foi feita pela Capital Airlines, que encomendou em 1954 nada menos que 60 aeronaves das versões V744 e V745D. Antes disso, diversos operadores europeus e da Commonwealth haviam encomendado seus Viscounts. A Air France foi a primeira e recebê-los, outro enorme feito se levarmos em consideração as históricas picuinhas que envolvem os dois países.

Mas o Viscount era um senhor avião e não tinha concorrentes. Não havia turbohélices no mercado, e os passageiros ficavam fascinados pela velocidade, silêncio e enorme janelas ovais do avião, que até hoje permanecem como as maiores janelas a equipar aeronaves comerciais em toda a história.

Os números comprovam a popularidade do Viscount. Nos diversos serviços europeus da BEA com o novo tipo, o que menos cresceu foi o mercado Mediterrâneo, com assombrosos 58% a mais de tráfego. Nas rotas escandinavas, aumento de 110% de tráfego. O Viscount rapidamente pagava a sí próprio.

V800, o definitivo

A Vickers não perdeu tempo e passou a estudar, ainda em 1952, uma versão alongada do Viscount, com capacidade para 71 passageiros, a Série 800. Com fuselagem aumentada em 4,04 m em relação ao V700 (e nada menos que 6,06m em relação ao V630) o novo avião usava os motores Dart R. Da5 com 1,690 ehp de potência, com capacidade para até 86 passageiros em configuração de alta densidade.

A BEA gostou do que viu e encomendou 12 (com opção para mais 10) do modelo V802 em abril de 1954. Mais tarde, duas novas versões, a V806 e a V810 foram desenvolvidas com maiores refinamentos. Com turbinas mais potentes, subiam e voavam mais rápido. O V810, a epítome do desenvolvimento do Viscount, decolava com peso máximo de 32.886 kg e voava a 587km/h na sua velocidade máxima de cruzeiro, um acréscimo de 48km/h sobre as versões 700.

Um Lorde inglês no Brasil

O sucesso do nobre britânico foi notado pela Vasp, que em junho de 1957 encomendou cinco unidades na versão V827, que utilizavam os motores Dart 525, com 1990 ehp de potência. Entregues a partir de outubro de 1958, foram matriculadas PP-SRC / SRD / SRE / SRF e SRG. Os Viscounts da Vasp foram as primeiras aeronaves à reação a voar em nosso país.

O sucesso do Viscount na Vasp foi imediato. Usado nas rotas mais nobres da empresa, voava de Norte a Sul pelo Brasil, ganhando em conforto e velocidade dos Convair, Constellation e Douglas contra os quais competia. Reinou absoluto nas rotas domésticas até 1962, quando chegaram os primeiros Electras da Varig.

Esse sucesso fez com que a Vasp aproveitasse uma oportunidade, surgida quando a BEA resolveu vender parte de sues modelos originalmente recebidos, os V710. A Vasp adquiriu em 1963 essa frota usada, matriculando-os aqui como PP-SRI / SRJ / SRL / SRM / SRN / SRO / SRP / SRQ / SRR e SRS. Foram retirados de serviço em 1969.

Ficaram conhecidos no Brasil como Vaiquinho (V701) e Vaicão (V827), sendo que estes últimos serviram até 1975, quando os V827 (SRC, SRF, SRH) foram retirados dos serviços da Ponte Aérea Rio-São Paulo, a última rota em que operaram. Foram vendidos à Pluna Uruguay, onde voaram mais alguns anos ligando Montevideo à Asunción, Buenos Aires e Porto Alegre.

Não que a operação das aeronaves no Brasil tenha sido livre de problemas. Alguns acidentes graves ocorreram com os Viscount, sendo três deles fatais. O primeiro foi com o PP-SRG, o último a ser entregue da série inicial, que colidiu com uma aeronave de treinamento da FAB sobre o bairro de Ramos, no Rio de Janeiro, em 22 de dezembro de 1959, não chegando a operar nem por um ano. Uma nova aeronave foi encomendada (PP-SRH) para sua substituição.

Outro acidente fatal envolveu o V701 PP-SRR, que bateu contra a Serra da Caledônia, em 4 de setembro de 1964 quando voava de Vitória para o Rio, sem deixar sobreviventes. Finalmente, o PP-SRE caiu num vôo de treinamento em 15 de setembro de 1968 sobre São Paulo, destruindo casas e matando seus dois únicos ocupantes.

Além destes acidentes fatais, a Vasp perdeu em incidentes distintos o PP-SRQ (3 de março de 1965 em treinamento no Galeão), PP-SRM (31 de outubro de 1968 durante pouso no Santos Dumont) e o PP-SRD (15 de maio de 1973 durante pouso em Salvador). Ninguém saiu gravemente ferido nestes casos, a não ser, talvez, a auto-estima dos comandantes.

Mas não foi a Vasp a única a voar com os aparelhos no Brasil. Outro operador ilustre dos Viscounts foi o Grupo de Transporte Especial (GTE) da FAB, que encomendou e recebeu dois V789D (FAB 2100 e 2101) para Transporte do Presidente Juscelino Kubitschek.

O FAB 2100 foi perdido num pouso no Aeroporto Santos Dumont, transportando o Presidente Costa e Silva, em 1967. Uma passagem interessante nesse acidente mostra um comportamento incrivelmente digno por parte de nosso Presidente. Atravessada no meio da pista, as portas foram abertas e os ocupantes começaram a evacuar a aeronave, assustados com a possibilidade de uma explosão. O ajudante de ordens do Presidente, postado na porta da aeronave, auxiliou nosso mais alto Dignatário a escapar, pedindo-lhe que corresse ao sair da aeronave. A resposta de Costa e Silva foi exemplar:Presidentes não correm, Major! E saiu calmamente andando...

Considerado irrecuperável, o FAB 2100 deixou o seu irmão siamês voando até 1987, quando já era há muito (e injustamente) chamado pelas costas de "cafona". Hoje ele descansa no Museu do Campo dos Afonsos, preservado para as futuras gerações.

Viscounts hoje

Os 438 Viscounts produzidos tiveram aproximadamente 60 operadores originais e mais de 200 no total, considerando as companhias que adquiriram aeronaves de segunda mão. Foi um dos maiores sucessos da indústria aeroespacial britânica, conhecida por produzir excelentes aeronaves do ponto de vista técnico e retumbantes fracassos sob o aspecto comercial.

Não foi o caso aqui. Virtualmente os mais remotos pontos do globo conheceram os préstimos do elegante quadrimotor inglês, que durante o auge de suas operações, realizava um pouso ou decolagem, em algum lugar do mundo, a cada 27 segundos.

Ainda hoje, perdidos na imensidão dos céus africanos, pouco menos que uma dezena desses nobres ingleses cruzam os céus, em vôos de carga e passageiros, feitos para operadores obscuros e erráticos. As qualidades intrínsecas do projeto são comprovadas a cada operação, mais de 50 anos após o vôo de seus antecessores.

Como autênticos nobres, os Viscounts seguem o exemplo de longevidade da realeza Britânica. Certa vez o Rei Fahd da Arábia Saudita, perguntado sobre o futuro da monarquia, afirmou que no futuro só restarão 5 reis: os quatro das cartas de baralho e o Rei da Inglaterra. Long Live The Viscount!

Gianfranco Beting

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