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Dash 80: o verdadeiro pioneiro


Numa época em que a aviação passa por dramáticas mudanças - apenas para poder sobreviver - relembrar o passado pode parecer uma extravagância, mas não é: a história mostra que em aviação, conhecer, estudar, entender as linhagens e origens de fabricantes e operadores são informações fundamentais, não apenas para entendermos a situação atual do setor, como para percebermos novas tendências, forças de mercado e até mesmo encontrar soluções para os desafios do dia-a-dia.

Olhando para trás, aprendemos os grandes feitos, estudamos os exemplos, evitamos a repetição de erros. Descobrimos as origens de muito do que hoje se toma por padrão. Em todos estes casos, poucas aeronaves podem ser consideradas tão importantes, tão presentes na aviação de hoje e de amanhã quanto o venerável Boeing 367-80, popularmente conhecido como Dash 80 (Eighty). Primeiro jato comercial da Boeing e dos Estados Unidos, o quadrimotor reescreveu toda a história da aviação comercial no mundo. Nossa matéria é um tributo e uma revisita ao grande pioneiro da aviação comercial à reação.

Pioneiro, mas não o primeiro

De fato, o britânico deHavilland Comet foi o primeiro jato comercial a voar e a entrar em serviço. Ou até mesmo o desconhecido canadense Avro Jetliner voou antes que o Dash 80. Mas ambos foram eclipsados pelo avassalador suvcesso do primeiro jato comercial da Boeing. Se somarmos seus descendentes diretos, o KC-135, Boeing 707 e 720, aproximadamente 2.000 jatos seguiram-se ao veterano nas linhas de montagem da Boeing.

Antes do Dash 80, a Boeing era apenas mais uma fabricante, mais conhecida por seus aviões comerciais complicados e problemáticos (o 307 e o 377, especialmente) ou pelos seus bombardeiros mais famosos, como o B-17, B-29 e o primeiro jato bombardeiro, o B-47. Sucesso comercial que é bom, ainda nenhum. Pois foi o Dash 80 que virou o jogo.

Tudo começou em 14 de maio de 1954, quando o futurista modelo saiu dos hangares de Renton, estado de Washington. Pintado com as cores oficiais da Boeing de então, amarelo e marron, suas linhas esguias e limpas assombraram o mundo da aviação, numa proposta que em termos de ousadia para os padrões vigentes, só pode ser comparada ao surgimento do Concorde.

Afinal, seus predecessores, o Comet e o Jetliner, subitamente pareciam ultrapassados: não traziam as asas enflechadas nem motores pendurados nas asas, ambas as soluções encontradas pelos engenheiros aeronáuticos alemães, gênios como Von Braun, Messerchmitt & Cia Ltda, de quem os engenheiros da Boeing discretamente copiaram muitos conceitos. Por falar em conceitos, esta é a importância do Dash 80: quase todos os dogmas aerodinâmicos e de arquitetura básica de um jato comercial de grande porte, podem traçar suas origens neste desenho que, de tão perfeito, parece simples.

Asas enflechadas? Motores pendurados? O que hoje pode parecer óbvio, naquele dia de sol, quando o modelo saiu do hangar pela primeira vez, parecia obra de ficção científica. E assim, tendo voado pela primeira vez no dia 15 de julho de 1954, o Dash 80 entrou para a aviação como uma das mais influentes aeronaves do primeiro século da aviação. Diria mais: depois do DC-3, foi o mais influente avião comercial de todos os tempos.

Arriscando tudo

Fica difícil para as gerações mais jovens compreenderem o impacto do Dash 80, mas talvez uma passagem ilustre bem o assombro que o jato representava. Numa corrida de hidroplanos realizada em Seattle (então a sede da Boeing) no ano de 1955, o presidente da companhia, Ed Allen, ordenou ao extravagente piloto de provas da companhia, "Tex" Johnston, que exibisse o Dash 80 para a USAF e para alguns clientes potenciais da companhia, convidados para assitir à corrida pela própria Boeing. Allen pediu a Tex que fizesse algo que deixasse "os convidados impressionados".

O que aconteceria a seguir quase custaria o emprego de Tex: o piloto trouxe o Dash 80 para uma primeira passagem, voando baixo sobre o barco cheio de convidados. Em seguida, veio para uma segunda passagem e, sem cerimônia, simplesmente executou um tounneaux-barril completo. Assombrados os convidados ficaram. Para Allen, a cena era ao mesmo tempo um horror. O circunspecto executivo ficou imaginando aqueles 16 milhões de dólares de metal e borracha (custo do protótipo e uma montanha de dinheiro para a época) indo parar no fundo do lago Washington. E era mesmo para se preocupar: a própria existência da Boeing dependia do sucesso do Dash 80. Mas, como hoje sabemos, o truque funcionou: satisfeita com o que viu, a USAF encomendou 29 tanques designados KC-135 e logo depois a Pan Am comprou 20 jatos.

De suas linhas, a Boeing desenvolveu o maravilhoso e elegante 707, usado até hoje e famoso ultimamente, pelo menos no Brasil, onde sempre é lembrado com o injusto apelido de "Sucatão". Do 707 e do 720, uma versão encurtada para vôos domésticos, a Boeing puxou o 727 e depois o 737. E aí não parou mais.

Exatamente como o Dash 80, que de 1954 a 1972 serviu continuamente como pau-para-toda-obra dos engenheiros da Boeing. Todos os tipos de sistemas, motores, antenas, refinamentos aerodinâmicos, idéias mirabolantes, enfim, o que precisasse de teste, pelos próximos 18 anos, foi levado ao ar nas costas do Dash 80. Manobras radicais, perigosas, nos limites de tolerância da máquina, de seus sistemas, de sua operação, foram encarados pelo jato marrom e amarelo. Se havia algo de errado, perigoso, esquisito, lá ia o veterano para alguma área despovoada, para tentar descobrir na prática onde morava o problema.

E assim foi até 1972, quando o jato foi colocado para descansar na Base Aérea de Davis Monthan no Arizona, tendo encerrado sua carreira de testes. Nesta ocasião, ele foi doado para o Museu Smithsonian, que na falta de um lugar adequado para exibí-lo, aceitou a aeronave e deixou-a lá, até 1990, período em que o venerando jato permaneceu esquecido. Mas norte-anericanos sabem como ninguém cultuar seus heróis e seu passado.

Então, depois de 18 anos, o Dash 80 foi levado de volta ao seu lugar de origem para receber uma minuciosa série de reparos, cuidados absolutamente necessários depois de 18 anos ao relento. Restaurado com carinho, o Dash 80 fez um par de vôos de demonstração ao redor de Seattle e retornou ao hangar 2-40 no complexo 2, local de montagem original das B-17 em 1991.

Um encontro de sorte

Sorte a minha. Justamente nesta época em que o Dash 80 estava sendo restaurado, tive a oportunidade de visitar algumas vezes a Boeing na condição de comprador: naqueles dias, a Transbrasil recebia seus primerios 767-300ER e eu, como diretor da empresa, acompanhei a negociação e a entrega do primeiro deles, o PT-TAD. Pois então, mal pousei em Seattle e a caminho da cidade, passando ao lado do Boeing Field, de longe, na estrada, vi as linhas inconfundíveis do Dash 80. Começei a gaguejar, olhos girando nas órbitas, balbuciando frases desconexas, possesso.

Seddyk Beliamani, diretor de vendas da Boeing para a América Latina na época e responsável pelo contrato com a GPA/ Transbrasil, começou a rir, vendo minha indisfarçável comoção. Nem precisei pedir: Tá bem, tá bem, Gianfranco. Depois eu te levo lá pra ver a máquina...

Assim foi: horas depois, tive a experiência - mística - de entrar na máquina e, no less, sentar-me na poltrona que um dia fora ocupada por Tex Johnston. Lá estava eu, ocupando a posição de piloto na primeira cabine de um jato comercial da Boeing. Como era hporário de almoço, não havia mais ninguém na máquina. E então, sozinho, fiquei bons minutos sentado lá, como um fiel que tem uma catedral só para ele. Fiquei observando cada mostrador, cada instrumento, pensando que quase toda a aviação à jato se desenvolveu a partir daquele rudimentar cockpit.

Depois, caminhei pelo espartano interior, sendo trabalhado naqueles dias por mecânicos e engenheiros voluntários que se doaram para fazer toda a restauração. Apesar da pouca luz - o Dash 80 quase não tem janelas, apenas pequenas escotilhas ovais - caminhava na caverna escura que era a fuselagem, quase um Jonas aeronáutico. E sentia aquele cheiro maravilhoso e intraduzível de avião velho, uma mistura de alumínio e vento, borracha e sol, querosene e ozônio (cheiro de nuvem), metal e skydrol, o fluido hidráulico que lhe corria nas veias metálicas. Guardarei este perfume na memória e no coração para sempre.

Descanso final

Voltei ao Brasil nas asas do PT-TAD e o Dash 80 voltou ao hangar. Depois destes dias de restauração, o Dash 80 teve sua cauda cuidadosamente removida e estocada. Foi então guardado no hangar 2-40 até 14 de junho de 2003, quando foi rebocado para o sol e para os cuidados dos engenheiros que iriam prepará-lo para realizar sua última jornada.

Passou então por meticulosa e apaixonada revisão enquanto a cauda era montada. Anéis de vedação, filtros e especialmente as borrachas, tiveram de ser trocadas, depois de 12 anos sem uso. Pneus também foram trocados, motores revisados. O sistema hidráulico, depois dessa longa hibernação, quase não apresentava vazamentos: foram necessários apenas 2 galões (aprox. 7.6l) de fluido para completar o nível. Apenas os tanques de combustível apresentavam maiores vazamentos, consequência das dezenas de modificações e testes realizadas nas asas do Dash 80 em décadas de testes.

Tudo pronto, em 25 de agosto de 2003, decolando de Seattle sob o comando de Jerry Whites, piloto de provas de programas especiais da Boeing, o veterano fez escalas em Rapid City, depois na Base Aérea de Wright Patterson, Ohio, onde permaneceu por dois dias sendo homenageado e celebrado. Então chegou a hora que ninguém desejava ver: no dia 27, o maravilhoso jato partiu para sua jornada derradeira, realizando o curto trecho em menos de 90 minutos e pousando no aeroporto de Dulles, em Washington, DC. Para onde ele teria ido?

O Museu Smithsonian em Washington, DC, é uma maravilha para quem ama a aviação. Situado no Mall da capital norte-americana, não comportava mais nenhuma aeronave em sua área de exposição. Entra na história Steven Udvar-Hazy, o dinâmico fundador e dono da ILFC, uma das maiores empresas de leasing de aeronaves comerciais do planeta. Multi-multi-multi-milionário, Udvar-Hazy pegou parte de seu rico dinheirinho e doou ao Smithsonian uma enorme área ao lado do aeroporto de Dulles, em Washington. Batizado de Steven Udvar-Hazy Center, o complexo, recém inaugurado, deu ao Smithsonian o que lhe faltava: área para expansão.

Inaugurado ao final de 2003 para celebrar os 100 anos de vôo dos irmãos Wright, o novo centro é hoje a moradia definitiva do Dash 80 e de varias outras aeronaves importantíssimas, como um Concorde, o B-29 Enola Gay e outros poucos e bons.

Assim, no dia 27, o Dash 80 taxiou lentamente em meio ao moderno aeroporto, sob o incessante piscar de luzes dos seus descendentes, outros Boeings e (admitam) Airbus, que celebraram a ocasião piscando suas luzes de navegação e faróis de pouso, acompanhando com respeito o lento taxiar do veterano.

Na cabine, Whites e seu co-piloto, Charles Gebhardt, estacionaram a máquina e cortaram os quatro motores Pratt & Whitney JT-3D-1, que deixaram o ar cheio com seu forte silvo e os corações apertados. Terminava alí a carreira de 26 anos de testes, feitos em 1,691 vôos e em 2,350 horas no céu. Pode parecer até pouco, mas, quão intensas horas foram estas!

O Dash 80 entrou no Museu e para a história. Uma das mais maravilhosas e influentes aeronaves comerciais, para sempre estará protegido e preservado com dignidade. Conforta saber que, de um modo ou de outro, ele sobrevive em cada um dos quase 20.000 jatos comerciais que pousam e decolam todos os dias, em todo o mundo. Bom e merecido descando para você, velho e querido Dash 80.

Gianfranco Beting

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