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20 anos do 767 no Brasil: os 767 da Transbrasil


O tempo passa rápido demais. Prova disso é que há exatamente 20 anos a aviação comercial no Brasil dava um salto qualitativo imenso pois no dia 18 de junho de 1983, um sábado frio de sol, o primeiro Boeing 767-200 da Transbrasil pousou em território nacional. Era uma estréia e tanto para a empresa de Omar Fontana. A sua chegada representou para a aviação brasileira a entrada na primeira aeronave de terceira geração da era do jato. Era o primeiro Boeing 767 da América Latina e o segundo do hemisfério sul, entregue dias depois de uma aeronave semelhante chegar na Austrália para a empresa Ansett.

Foi o primeiro de uma série de "firsts" da Transbrasil. Primeira aeronave comprada diretamente da Boeing. Primeiro wide-body da empresa. Primeira (e única) aeronave a operar regularmente sem escalas entre o hemisfério norte e o aeroporto de Congonhas. Primeira aeronave brasileira a ser exposta, com toda a pompa e cerimônia, no Salão Aeroespacial de Le Bourget.

Eu estava lá. E agora vou contar pra vocês como é que foi, misturando saudosismo com história, numa narrativa cheia de saudade da empresa que teve tudo para ser nossa segunda maior companhia aérea, e, quiz o destino, desapareceu melancolicamente.

Agente 727: a Transbrasil cresce

Depois da introdução em serviço do primeiro Boeing 727-100 em 1974, Omar Fontana nunca mais comprou aeronaves de outros fabricantes, a não ser da Embraer. Encantado com a confiabilidade e robustez dos jatos, Fontana começou a comprar várias unidades do modelo e com eles, substituir os BAC One-Eleven e Dart Heralds que até então formavam a britânica frota da Transbrasil.

Os 727 eram cavalos de raça: velozes, ariscos, exigiam atenção e dedicação de seus pilotos, que sem exceção, adoravam (e adoram) pilotar o trijato. Concebido na década de 60, o modelo nos anos 80 não poderia ser considerado moderno. Sua tecnologia pedia três motores beberrões e três tripulantes técnicos para levar pouco mais de 120 passageiros. Se hoje parece impossível ganhar dinheiro com um avião assim, na época ainda se conseguia fazer com que o 727 conseguisse voar lucrativamente.

Assim, a frota da empresa chegou a 19 aeronaves, a maior da América Latina. E para promover o feito, a agência de publicidade do grupo Transbrasil, a Intermarket, criou um (cafonérrimo) garoto-propaganda, o Agente 727, que promovia o fato de que "só na Transbrasil o passageiro voava sempre com o 727".

Omar, como todo bom empresário, embora amasse o 727 e tivesse investido muito da imagem de sua empresa no venerável trijato, sabia que para poder continuar a competir, era preciso renovar sua frota. Em 1978 chegou a considerar a compra e até encomendou 4 Boeings 727-200, zerinhos de fábrica. Mas nas pranchetas da Boeing, Omar viu algo que chamou sua atenção: os novos modelos que estavam sendo produzidos para substituir o próprio Boeing 727. Eram dois: o sucessor direto (na época) que seria o futuro Boeing 757 e para completar o serviço, o Boeing 767.

Como uma criança numa doceria, Omar não sossegou: visionário e apaixonado, percebeu que deveria investir suas fichas na nova geração de jatos que Seattle preparava. Abandonando o 727-200, em 198, anunciou a compra do que viria a ser sua nova frota: 9 Boeing 757-200 e 3 Boeing 767-200, e com estes últimos esperava operar rotas-tronco domésticas, e sonhando alto, os primeiros vôos internacionais.

O ano de 1982 começou bem. Em 13 de janeiro, aconteceu a cerimônia de apresentação oficial do Boeing 757, e a Transbrasil, como empresa compradora, foi convidada de honra do evento. Fontana gentilmente me convidou para "assessorá-lo" na cerimônia, e com ele fui para Seattle.

No dia 14, para supresa geral e não menos dele próprio, a Boeing convidou-o a voar um dos primeiros 767 construídos, ainda em regime de testes. Na chuvosa manhã, Omar decolou pilotando o jato de prefixo N603UA, que meses depois viria a ser entregue para a United Airlines. Encontrei-o logo depois, ainda no pátio molhado de chuva. Ele estava absolutamente eufórico com o novo jato que um dia integraria a frota da Transbrasil. Sem parar de falar sobre as qualidades de manejo e potência do avião, voltamos ao hotel com Omar me descrevendo cada segundo do vôo de quase duas horas. Eu bebia cada palavra.

The 767 Is Coming

Voltando ao Brasil, Omar, entusiasmado com seu vôo, compôs uma música em homenagem ao 767, entitulada "The 767 Is Coming", que viria a ser executada por ele nos seu momentos de maior alegria. Omar, para quem não sabe, era um ótimo pianista (auto-didata) e compositor com vários temas eruditos, muitos deles gravados.

Passando das pautas às pistas, a sua Transbrasil começava a se preparar para o salto qualitativo que a introdução dos novos modelos representariam. Tanto o 757 como o 767 eram a última palavra em tecnologia, primeiros aviões no Brasil a operar com a então novíssima tecnologia digital que substituía nas cabines de comando os mostradores e instrumentos analógicos por telas de tubos de raios catódicos, ou CRT (Cathode-Ray Tubes). Esse padrão de tecnologia viria a ser conhecido como "glass cockpit", referência às telas instaladas em substituição aos instrumentos redondos, aos tradicionais "reloginhos". Para quem só operava os analógicos 727, isto representava um salto e um desafio consideráveis. A Transbrasil então começou a investir ainda mais em manutenção. Com apoio da GE, montou uma oficina de motores em Congonhas e comprou novas bancadas de testes, reparos e procedimentos, qualificando pessoal e investindo pesado para receber sua nova estrela.

O ano de 1983 começou ruim, com o Brasil em grave recessão. A Transbrasil resolveu desistir da compra do 757, optando por receber apenas os 3 Boeing 767-200 encomendados. O clima negativo que o Brasil atravessava, impedia os vôos altos que Fontana havia traçado para a sua empresa. Por volta de março, a agência Intermarket preparou e começou a veicular uma bonita campanha de lançamento, apresentando o novo jato como a Geração do século XXI, em anúncios de jornal que mostravam as luzes de uma aeronave se aproximando de uma pista à noite, do ponto de vista de quem estivesse postado no eixo da mesma, olhando para a aproximação de frente. A cada dia, o jato "chegava mais perto" nas imagens, num belo exemplo de anúncios sequenciais.

Entusiasmado, Fontana não escondia seu orgulho de trazer o 767 para o Brasil. Tanto é assim que convidou um grupo de jornalistas, empresários e formadores de opinião para acompanhá-lo na excursão que o N8277V (prefixo provisório do futuro PT-TAA) faria entre Le Bourget, Seattle e então para o "Delivery Flight", o vôo de entrega do seu novo jato.

Chega o grande momento

O programa começou com a saída em 27 de maio para Paris, num vôo da Air France. Naquele tempo, o trecho até o Rio era feito em Boeings 737 da Vasp, partindo de Congonhas. Eram 21:14 quando o PP-SNB decolou de São Paulo rumo ao Galeão, já com o call-sign AF090. Pousamos as 21:43 e então embarcamos no N1289E, um 747-200 da Air France, que decolou pela pista 09 do Galeão as 22:52, dando prosseguimento ao vôo AF090. Eram 13:59, hora local, quando tocamos do outro lado do Atlântico, depois de 11 horas e 7 minutos de vôo.

Nos dias seguintes, fomos para o famoso Salão Aeroespacial de Le Bourget, que naquele ano contava com duas aeronaves destinadas a operadoras brasileiras expostas: o 767 da Transbrasil e um BAe 146 que viria a ser entregue à TABA.Era emocionante ver o 767 evoluindo sobre os céus franceses. Comandado pelos experientes pilotos de provas da Boeing, o 767 dava tudo que tinha, voando sempre antes de um de seus diretos competidores, um A310 nas cores da KLM. Após cada pouso, Omar observava encantado sua nova aeronave, taxiando imponente em meio aos mais avançados aviões do mundo.

Cruzando o Atlântico Norte

No sábado, 4 de junho, embarcamos finalmente no Século XXI. Eram 07:00 e já estávamos a bordo, prontos para o longo vôo diurno. Com Omar Fontana no comando, assistido pelo piloto da Boeing, o 767 deixou Paris com destino à Seattle, decolando precisamente às 07:23 da manhã. Teríamos um lindo dia pela frente. Os céus claros da primavera na Europa permitiam observar bem a costa francesa ficando para trás e nossa aeronave tomando a proa norte, rumo à Costa Oeste da América do Norte. Naquela época, vôos longos em dois motores eram ainda novidade, pois o conceito ETOPS seria mesmo lançado pelo próprio 767. Era, portanto, um vôo importante para a empresa e para o fabricante.

O clima a bordo era de alegria e descontração. Os executivos da Boeing voltavam satisfeitos para sua base. Clancy Wilde, responsável direto pela venda dos 767 à Transbrasil, era só alegria. O veterano executivo, sentado ao lado de Omar na primeira classe, divertia-se com as histórias de Omar sobre fauna e flora brasileira. Os pouco mais de 30 ocupantes passeavam pelo jato, enquanto eram exibidos dois filmes. Um brunch foi servido e estava bem saboroso: entrada foie-gras e salada, e como pratos principais, omeletes e salmão ao vapor.

Lá embaixo, a imensidão da Groenlândia em plena luz do dia encantava os passageiros. Milhares de icebergs, claramente visíveis na luz de meio de dia, formavam um formidável contraste com o azul profundo do Oceano. Eram 18:33 no horário de Paris ou 09:33 hora local, quando pousamos no Boeing Field, o aeródromo usado nos vôos de testes da Boeing. Foram 11 horas e dez minutos de um vôo confortável e seguro.

Cerimônia de entrega: a aviação brasileira entra no Século XXI

Quinta-feira, 16 de junho de 1982. Um dia de sol e temperatura amena, 20ºC em Seattle. Agora estávamos em Everett, na fábrica qe serve de local de montagem dos 747 e 767. Os convidados, entre os quais o Cmte. Rolim Amaro e o Brigadeiro Waldyr de Vasconcellos, chefe do DAC, assistiram à cerimônia de entrega das chaves do primeiro 767-200 da Transbrasil. Discursos e champagne depois, o grupo toma lugar no 767 e às 11:21 as portas são fechadas. Finalmente, acabamos taxiando às 11:32 e sete minutos depois, decolamos para nossa próxima escala, Miami, onde pousamos às 19:49, depois de 5 horas e 17 minutos de vôo. Com uma temperatura de 32ºC, o calor intenso contrastava com a temperatura amena da cabine. E de Seattle.

No dia seguinte, sexta-feira, partimos de Miami. Parado no gate H-17, no terminal da Delta Airlines, o N8722V reluzia sob os holofotes do aeroporto. Eram 23: 35 quando o Boeing 767-200, callsign Transbrasil 767,deixou o concreto da pista 09L de Miami. Passamos sobre as luzes de downtown e aproando Bimini, nos preparamos para o trecho noturno.

Na cabine mantida à meia-luz, os funcionários da Transbrasil e convidados da empresa misturavam-se num clima de confraternização. Os ocupantes receberam posters e maquetes do 767 como lembrança do vôo inaugural, depois de servido o jantar. O vôo foi curto: eram 07:12, hora local, quando o Boeing 767 tocou o solo brasileiro, fazendo sua primeira aterrissagem no aeroporto internacional de Brasília. Antes disso, porém, fez uma emocionante passagem rasante sobre a pista. No pátio, autoridades e convidados aglomeravam-se para ver a nova aeronave, que reluzia sob um sol maravilhoso de outono, sem nenhuma nuvem no céu.

Alguns ocupantes desembarcaram e depois de um rápido coquetel, oferecido ali mesmo junto à aeronave, era hora de realizar o trecho final, com destino São Paulo. Decolamos às 09:08, tomando a proa sul. Um café da manhã foi servido e degustado com prazer, fazendo o curto trecho de pouco mais de uma hora passar ainda mais rápido. O 767 então foi se aproximando do aeroporto de Congonhas, e ao exemplo do que fizera horas antes em Brasília, fez uma primeira passagem em vôo rasante sobre a pista.

O pátio estava lotado de pessoas, todos convidados da empresa aguardando a chegada do 767. E depois de fazer um circuito baixo, o 767 pousou definitivamente e taxiou em frente aos convidados, que aplaudiam e fotografavam. Passava pouco das dez horas e a longa jornada do N8277V terminava alí.

Em serviço - e fora dele

Nas semanas seguintes, seus dois irmãos, o PT-TAB e o PT-TAC foram entregues. A Transbrasil os colocou em serviço no mês de julho, inicialmente fazendo os vôos TR304/305 (São Paulo, Brasília, Fortaleza, Brasília, São Paulo), TR176/177 (São Paulo, Brasília, Manaus, Brasília, São Paulo) e TR554/555 (São Paulo, Rio, Salvador, Rio, São Paulo).

Não demorou muito e Omar Fontana colocou os 767 em rotas internacionais. Em caráter de vôos charter regulares, os Boeing 767 saíam de São Paulo para Orlando, Flórida, com escala na ida no aeroporto do Galeão. Na volta, os jatos vinham direto de Orlando para Congonhas, o mais longo vôo regular sem escalas, a pousar em Congonhas. Estes eram os vôos TR1176/1177, e marcaram época. Pela primeira vez, um jato comercial unia os Estados Unidos sem escalas com Congonhas.

Estes serviços foram mantidos em Congonhas até janeiro de 1985, quando todos os vôos domésticos e internacionais foram transferidos para o aeroporto de Guarulhos, recém inaugurado. Durante este período, os 767 da Transbrasil operaram num regime especial, pois com sua grande envergadura, não cabiam nos pátios de Congonhas e eram obrigados a estacionar em posições remotas e taxiar pela pista auxiliar, um fato que pouca gente lembra. Foi um período notável, ver os 767 em operação constante em Congonhas. Logo, a frota de 767 cresceria, chegando a um total de 11 aeronaves operadas simultaneamente, sendo que deste total, 5 foram do modelo 767-300ER.

Omar pensava adiante do seu tempo e o 767 é uma boa prova disto. É uma pena, para a memória deste pioneiro de nossa aviação e para os milhares de funcionários que ao longo de quase meio século trabalharam na Transbrasil, lembrar da empresa e de seus dias de glória. Falida, a companhia do arco-íris parou de voar em dezembro de 2001, quando o tão sonhado Século XXI, que os Boeing 767 ajudaram a antecipar, mal começava.

Estas três históricas aeronaves, os saudosos PT-TAA, PT-TAB e PT-TAC, hoje jazem abandonados, como que a assombrar os hangares e pátios da empresa em Brasília, testemunhas silenciosas de uma história de final melancólico.

Gianfranco Beting

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