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Galeão: minha alma canta

 

Origens

A maravilhosa canção "Samba do Avião" de Tom Jobim começa assim: Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro, estou morrendo de saudades..." Nosso maestro soberano, o maior brasileiro de todos os tempos, narra com sua sensibilidade costumeira mais uma chegada à sua querida terra natal, do ponto de vista de alguém que olha pela janelinha de um avião. Quer começo melhor para falar do aeroporto que anos mais tarde ganharia o seu próprio nome? 

Não que seu nome oficial, o anterior, fosse ruim. Muito pelo contrário. Galeão é um tipo de embarcação tradicionalmente usada pelos navegantes e descobridores. Mas para qualquer aficionado por aviação no Brasil, este sonoro nome é sinônimo de um dos mais importantes aeroportos de nosso país. O AIRJ, Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro - Tom Jobim (ICAO: SBGL / IATA: GIG) é um dos aeródromos de maior importância e de história mais fascinante. Vamos a ela.

A história do desenvolvimento da Ilha do Governador começou a partir da sua ligação com o continente. As primeiras barcas atracavam na Freguesia e depois também no Galeão e na Ribeira e chegaram em 1838. Por terra, foi inaugurada uma linha de bondes, em 1922, ligando o bairro do Cocotá à Ribeira, sendo estendida posteriormente até o bairro do Bananal. A travessia Praça XV-Ribeira em barcas foi reativada em 1986, depois de muitos anos de abandono.

O grande marco do desenvolvimento da Ilha do Governador, porém, foi a construção das pontes, ligando a Ilha do Governador à do Fundão e essa ao continente, em 1949. A linha de ônibus Mauá - Governador foi a primeira a fazer a travessia de passageiros pela nova ligação. Com o acesso por terra assegurado, criou-se a condição ideal para o desenvolvimento de um aeroporto civil e de uma base aérea para a FAB. A partir de 1952, com a inauguração do Aeroporto Internacional do Galeão, a Capital Federal passou a contar com dois aeroportos de peso.

O terminal inaugurado na época era menor do que o do Santos Dumont, pois o Galeão recebia principalmente os vôos internacionais, que se beneficiavam de sua pista mais longa, com 3.180 metros de extensão. O acanhado terminal, na época de sua inauguração, era suficiente para acomodar os passageiros dos DC-6, DC-7, Constellation e até os jatos de primeira geração, como os VC-10, Convair 990, Comet IV, Caravelle, DC-8 e Boeing 707. Com a introdução do Boeing 747 em 1970, ficou evidente que algo precisaria ser feito para comportar a chegada e partida de vôos com até 400 passageiros. 

 

Apogeu e glória

O Governo Federal optou por construir um terminal totalmente novo no lado oposto da única pista então (16-34, hoje 15-33) bem como uma nova pista (09-27) de 4.000m de extensão, que ao ser inaugurada era a maior do Brasil. Com a inauguração dos serviços do Concorde em 1976, ligando Paris ao Rio, o Galeão entrava para o seletíssimo grupo de aeroportos mundiais que contavam com serviços supersônicos regulares, o que já seria mais do que suficiente para colocar o Galeão numa posição de destaque em relação a muitos outros aeroportos, tanto no Brasil como no exterior. 

Em 20 de janeiro de 1977 finalmente foi inaugurado o novo Aeroporto Internacional, o maior complexo aeroportuário da época no Brasil, com capacidade inicial para 6 milhões de passageiros/ano. O terminal original do Galeão passou a ser referido como "Galeão Velho" e foi desocupado, com parte de sua infraestrutura sendo adaptada para se transformar num terminal de Cargas. O AIRJ pode ser considerado uma cidade, com uma população flutuante de mais de 30 mil pessoas, envolvidas na operação e manutenção de todo o complexo aeroportuário que ocupa 14 quilômetros quadrados, ou quase a metade da Ilha do Governador. 

Com os Concorde, Jumbo, DC-10 e Tristar visitando suas pistas diariamente, sem a concorrência de Guarulhos para roubar seu tráfego, o AIRJ conheceu seu período de maiores glórias. Chegar e sair do Brasil por via aérea em vôos de longo curso, significava passar pelo Galeão. O tráfego de turistas, especialmente no receptivo, também crescia, naquela época em que o Brasil tinha uma imagem lá fora de destinação exótica, divertida, romântica. Isto antes da violência e da inépcia do Governo e da sociedade brasileira destruírem esta radiante imagem e, com ela, as perspectivas de turismo de nosso grande país lá fora. 

Para ajudar, a Varig também vivia uma fase esplendorosa, usando o Galeão como sua única base internacional para vôos de longo curso. Todos os serviços para a Europa, Ásia, Américas e até mesmo na África, pois naquela época, a Varig voava para as cidades como Monróvia, Lagos, Abdijan, Johannesburg e Maputo, destinos ligados diretamente, sem escalas, ao Galeão.

No período noturno, era uma verdadeira festa da Pioneira. Os pátios ferviam com o som dos motores dos Boeing 707 e DC-10 taxiando com destino a cidades tão importantes como atraentes: Paris, New York, Tokyo, Madrid, Copenhagen, Frankfurt, Miami, New York... só dava Varig. Era comum ver uma fila de 707s taxiando para decolar. Por que eu não nasci 10 anos antes?

Como se não bastasse, todo o anel superior do novíssimo terminal era um gigantesco terraço a céu aberto, que somente anos depois seria coberto, permitindo uma visão sem obstruções de todo o pátio e principalmente dos 3.180m da pista velha. Fotografar, principalmente no período da manhã, quando o sol estava às suas costas, era tão fácil quanto ver um avião da Varig taxiando à sua frente. Uma era inesquecível.

Em contrapartida à presença da Varig, muitas empresas internacionais também davam o ar da graça. Apenas para citar algumas que já se foram ou que não servem mais o aeroporto, Tínhamos a British Caledonian (707 e DC-10), Royal Air Maroc (707 e 747-SP), Aeroperú (DC-8 e L-1011), LAP (707 e DC-8), Braniff (DC-8 e 747), Viasa (DC-8 e DC-10), SAS (DC-8 e DC-10), SAA (707 e 747), Pan Am (747, 747-SP, 707, L-1011), Alitalia (DC-8, DC-10, 747), KLM (DC-8, DC-10, 747) Swissair (DC-8, DC-10, MD-11) e Lufthansa (707, DC-10, 747), entre outros.

Ou até mesmo o Iraque, nos anos 80, que contava com dois vôos semanais da Iraqui Airways, feitos normalmente com seus 707-320C ou, mais raramente, com os 747-200. Já pensou, um 747 da Iraqui ao lado de um 747 da Pan Am? Pois é, isso acontecia no Galeão. O mundo era outro, mesmo.

Mas é claro que o Concorde trazia ainda mais charme ao já especial aeroporto do Galeão. Afinal, conta-se nos dedos de uma mão o número de destinos para onde o saudoso supersônico voava regularmente. Eram dois vôos por semana unindo Paris ao Rio com uma escala em Dakar, perfazendo o trajeto num tempo total de 7 horas e meia. Iniciado em 1976, o serviço foi sustentado até 1982, quando a Air France cancelou este e outros vôos deficitários do Concorde. 

A gente fica apenas imaginando o charme de se voar frequentemente no SST, até porque naquela época quem era rico mesmo não dava bandeira. Era chique ser educado e discreto, coisa de quem tinha dinheiro e não de quem fez dinheiro. Assim, gente de "dinheiro velho" embarcava discretamente no supersônico para satisfazer seu mimos. Havia, por exemplo, um famoso barão da indústria que ia à Europa de Concorde apenas para assistir a um concerto de música erudita, sua paixão. Outro também famoso, na sombra, levava sempre que podia a sua secretária para "despachar" durante suas visitas ao Ritz de Paris. Fico imaginando se fosse hoje - Capa da revista Caras: "Débora Secco reata romance com Dolabella e vai para o Castelo de Caras no Concorde"... Mas voltemos ao Galeão, até porque esta época se foi e não volta mais. 

 

Voando na contra-mão

Da mesma maneira que o Galeão tirou parte do brilho e importância do Santos Dumont, ele sofreu o mesmo efeito com a inauguração do Aeroporto Internacional de Guarulhos em janeiro de 1985. Justiça seja feita: já naquela época, São Paulo gerava mais tráfego que o Rio. A inauguração de Guarulhos começou então um gradual esvaziamento do Galeão, num processo contínuo que só a Infraero não percebeu.

Desde 1985, lenta mas continuamente, o tráfego aéreo mudou-se para São Paulo. A Varig bem que resistiu, pois muito dinheiro foi investido na base Rio: é lá que a empresa tem sua segunda mais importante sede operacional, com seus maiores hangares, centros de simuladores de vôo, etc. Mas a concorrência internacional já havia escolhido voar para São Paulo em detrimento do Rio, pois para estas empresas, o avião vai onde está o passageiro, uma lei de mercado que a Infraero ainda parece não compreender. 

Projetado para atender inicialmente 6 milhões de passageiros/ano, o AIRJ, dois anos depois de inaugurado, atingiu sua capacidade com 5.700.000 passageiros. Com o aproveitamento de áreas previstas em projeto para futuras expansões, em 1990 a Infraero realizou obras que deram ao AIRJ mais 20 mil metros quadrados no terminal de Passageiros. Esta estrutura já seria suficiente, com a crescente importância de Guarulhos.

Sabe-se lá o porquê, se por incompetência, capricho, ou... deixa pra lá, as cabeças brilhantes de nossos administradores resolveram investir muitas centenas de milhões de reais, pagos pelo contribuinte e pelos passageiros, para construir mais um segundo terminal, o TPS 2, dobrando a capacidade de passageiros para 13 milhões ao ano. Engraçado é que desde a sua inauguração, o Galeão apresenta um movimento de passageiros que raramente passa dos 6 milhões ao ano. 

Ao mesmo tempo que as obras eram tocadas em ritmo de Brasil Grande, Guarulhos atingia sua saturação, algo só não mais gritante porque a economia, e sobretudo os vôos internacionais, têm andado de lado nos últimos três anos. Ou seja: um terminal inteirinho, novinho em folha, foi construído... num aeroporto que não precisava dele. Este triste episódio me faz lembrar o começo da canção "Sandália de Prata": Isto aqui ô-ô, é um pouquinho de Brasil iá-iá... 

Assim, SAS, KLM, Lufthansa, Swissair, Alitalia, Pan Am, depois Eastern, United, Delta, American, South African... todas iniciaram vôos para as duas cidades, mas com o tempo, acabaram consagrando GRU como o grande "hub" intercontinental sul-americano. A única que mantêm vôos para GIG ao invés de GRU é a TAAG Angola Airlines, com um serviço semanal.

Trapalhada feita, era preciso justificar à opinião pública o porque de se alocar os parcos recursos do órgão para ampliar um aeroporto que não precisava ser ampliado. Na falta de melhores e convincentes argumentos, nos últimos anos, a Infraero tem procurado "incrementar o uso do aeroporto". Pateticamente, a estatal convoca reuniões para "encontrar soluções" para ocupar o Elefante Branco que concebeu, fez crescer e agora encontra dificuldades em sustentar. 

Por exemplo, convocou representantes da Companhia de Turismo do Rio de Janeiro, da BITO (Brazilian Incoming Tour Operators), da Associação Brasileira de Empresas de Eventos do Estado do Rio de Janeiro e da Associação de Concessionárias Aeroportuárias "para discutir um melhor aproveitamento do Setor Vermelho do Terminal de Passageiros 1 (TPS1) do Aeroporto Internacional Tom Jobim, que se encontra hoje ocioso". Hoje os 150.063 metros quadrados de área útil nos terminais, além do terminal de cargas (25.496 metros quadrados). Há vagas para 2.659 carros nos estacionamentos e nada disso é totalmente ocupado.

Nesta ocasião, veja a pérola divulgada pelo órgão: Os representantes visitaram as instalações para avaliar a possibilidade do seu uso como um centro de convenções, feiras e exposições. O Aeroporto do Galeão vem perdendo movimento,já que em conseqüência da crise da aviação comercial internacional muitas empresas deixaram de operar lá, como a Lufthansa, Alitalia, South African, JAL, KLM, Lloyd Aereo Boliviano e Swiss. Ah, bom.

Não satisfeita, as vezes aparece alguém da estatal e divulga sandices do gênero "Iremos obrigar as empresas que servem GRU a voltar ao GIG" ou "vamos reduzir as taxas aeroportuárias no GIG para atrair de volta os aviões" ou "Nenhum novo vôo será acrescentado em Guarulhos, somente no Galeão/Tom Jobim". É pra rir ou pra chorar?

Desculpe se o texto ficou ácido demais, político demais, caro leitor. Nosso foco tem de ser mesmo o amor à aviação. E quem ama a aviação, como Tom Jobim amava, não pode deixar de se encantar por este que foi o portão de entrada principal do Brasil por mais de um quarto de século. E por falar nisso, justa homenagem foi feita quando, postumamente, o Galeão se transformou no Tom Jobim.

Se hoje ele é um aeroporto-fantasma, isto tem mais a ver com a ver com o bicho-homem do que com as maravilhosas máquinas que sempre pousaram em suas duas pistas. Até porquê, se eu fosse um avião, eu ia sempre querer pousar nele: juntinho do Rio, de suas praias, eternamente abençoado pelo Redentor, o Tom Jobim pode hoje não ser o mais importante do país. Mas que é um dos mais belos e bem localizados, isto ninguém pode negar. Nem tirar. 

 

Gianfranco Beting

 

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