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Beta Cargo BEX9923


Nove de Julho vai ficar pra sempre na minha cuca. Foi na madrugada deste feriado paulistano que realizei um velho sonho: voar num DC-8. Mais precisamente no DC-8-73CF (Convertible Freighter) da Beta Cargo, matriculado PP-BEX, orgulho da frota da empresa cargueira. Embarque conosco neste primeiro CARGO Flight Report.

Madrugada fria em São Paulo, os termômetros marcando 9 graus, apresentei-me no portão Charlie de Guarulhos, onde viria a encontrar a tripulação que levaria o veterano DC-8 para o vôo triangular entre Guarulhos, Salvador, Recife e da capital pernambucana, de volta a Guarulhos.

Por volta das 2 da manhã, a Kombi da companhia nos deixou em frente ao belíssimo jato. Mais parecendo uma maravilhosa dama, sua silhueta esguia, acentuada pela bela pintura da BETA, fazia com que o velho "oito" dominasse o pátio que fervia de atividade em plena madrugada, horário de pico das operações da Rede Postal Noturna (RPN) dos Correios.

Ao seu lado, três Boeing 727-200F da Total eram carregados com encomendas da RPN. Um ATR-42 da Total, outro 727-200 - este do Lloyd Aéreo Boliviano - e o veteraníssimo PP-VLS, um 727-100F da VarigLog, faziam companhia ao veterano quadrijato. Isso sem esquecer que naquela madrugada fria, partiu também do pátio de Guarulhos outro DC-8. Desta vez, o -63F da Skymaster, matriculado PR-SKM, que passou taxiando e produzindo o maravilhoso silvo dos motores Pratt And Whiteny JT3.

O DC-8 da BETA tem muita história pra contar. Fabricado em 1969 pela Douglas Aircraft Corporation, em Long Beach, California, foi encomendado pela lendária Flying Tigers e inicialmente operado como cargueiro puro na versão -63F. Foi o 488º DC-8 a passar pelas linhas de produção e originalmente era equipado com 4 motores Pratt And Whiteny JT3-D-7 e peso máximo de decolagem de 161 toneladas e capacidade para 48 toneladas de carga. Na Flying Tigers foi registrado com a matrícula N796FT.

Passou seus primeiros anos ocupado no transporte de material de apoio à Guerra do Vietnam, rotineiramente cruzando a vastidão do Oceano Pacífico. Depois, em 1981, a Flying Tigers arrendou a máquina para a Air India, que tratou de utilizar o Douglas como sua principal aeronave cargueira a ligar o subcontinente indiano com pontos na Europa.

Pouco mais de um ano ela estava de volta aos USA. Depois, em 1984, foi a vez de uma outra empresa aérea norte americana, a Emery Airfreight, comprar o passe do veterano Eight. O jato então foi remotorizado com os mais modernos, econômicos e silenciosos CFM 56-2C, que melhoraram muito a performance do clássico quadrijato, emboira não apresentassem o silvo estridente e maravilhoso dos Pratt. Mas com esses CFM, o DC-8 ganhou um novo sopro de vida útil. O preço do progresso.

Com a falência da Emery em janeiro de 2001, o veterano N796FT foi passar uma longa temporada no deserto de Marana, Arizona, enquanto esperava as atenções de outro operador. Foi quando, em outubro de 2004, a BETA entrou na parada e arrematou o veterano quadrijato para suas operações. O PP-BEX foi totalmente revisado, ganhou o novo esquema de pintura da BETA e entrou em serviço nos céus brasileiros. Agora prepara-se para acolher mais um irmão: outro DC-8-73CF deve chegar em agosto de 2005 para juntar-se ao PP-BEX.

Na madrugada de nove de julho, o DC-8 seria tripulado por três profissionais experientes: o comandante Caminha, ex-caçador, piloto de F-5 da FAB (depois Caminha passaria anos voando o 707 presidencial no GTE da FAB); o co-piloto Struckel, também com vasta experiência na Força Aérea Brasileira; e o engenheiro de vôo Vinícius, ex-primeiro oficial de 737-200 na Vasp e 707 na própria BETA. Três pilotos experientes, uma máquina clássica: a madrugada prometia.

Enfim, ficamos aguardando o preenchimento dos porões do DC-8 com a carga dos Correios. Toda a capacidade cúbica do DC-8, no deck principal e nos porões inferiores foi preenchida, quase 38 toneladas de pacotes, cartas, encomendas. É bom lembrar que a capacidade em peso deste DC-8 é de 48 toneladas de carga. Neste vôo, a limitação foi mesmo por espaço, e não pelo peso da carga.

Mesmo assim, o processo de carregamento demorou mais do que o previsto, até porque a carga do Correio chegou muito tarde. O BETA 9923 sairia depois do horário previsto, 02h40 da manhã.

A tripulação do PP-BEX ocupava seus assentos aguardando os procedimentos de carregamento, peso e balanceamento da carga. Balancear bem a carga dentro dos porões é fundamental para a segurança do vôo, de maneira a manter o CG, Centro de Gravidade da aeronave, dentro dos limites aceitáveis. Isso também colabora para a diminuição de comsumo: uma aeronave bem balanceada voa melhor.

Finalmente, o loadmaster, profissional responsável pelo carregamento, deu a operação por concluída e trouxe o manifesto de carga para aferição e aceitação do comandante. Tudo em ordem, Caminha ordenou a Vinicius que providenciasse o fechamento da porta principal de carga, um procedimento que é feito acionando uma bomba pneumática no piso do deck principal, bem em frente à porta de entrada de tripulantes. Ao mesmo tempo, o primeiro oficial Struckel solicitava ao controle de solo de Guarulhos o acionamento dos motores no próprio local de estacionamento.

Portas fechadas, Vinicius assumiu novamente sua posição no painel do engenheiro de vôo e iniciou a leitura do before start check-list. Como o DC-8 é uma aeronave antiga, o volume de trabalho do engenheiro de vôo é intenso. Funções que em aeronaves modernas são automatizadas, ainda são manuais no veterano Douglas. A cantoria do check-list e as ações necessárias tomaram mais cinco minutos até que o motor nº 3 foi acionado, seguido progressivamente pelo nº 4, nº 2 e nº1.

Os quatro CFM girando, o trator empurrou o DC-8 para o pátio as 03h44 e então o controle de solo foi acionado para autorização de táxi:

BETA 9923, livre taxi para a posição de espera da pista 09 esquerda.

Caminha aplicou uma leve pressão nas quatro manetes de potência e o DC-8 iniciou sua marcha rumo a mais uma jornada de trabalho. Eram 03h48 da manhã. O BETA 9923 iniciava o taxi e Vinicius iniciava mais um check-list, o before take-off. Nesse momento, Struckel fez o check de comandos, empurrando para frente e para trás, para um lado e para o outro a coluna de pilotagem e o manche do DC-8, para certificar-se que os comandos aerodinâmicos do DC-8 estavam funcionando perfeitamente, acionando o leme, profundores e ailerons. Flaps na posição 23º, aeronave configurada para decolagem.

Na noite fria de Guarulhos, o DC-8 taxiava para posição de espera. A freqüência de rádio foi então mudada para a torre, que confirmou à tripulação do BETA 9923 as instruções de subida por instrumentos, a SID - Standard Instrument Departure - que nesta noite seria a subida Surf, com curva à esquerda após a decolagem.

O DC-8 pesava 158.000 kg naquele momento, apenas quatro toneladas abaixo de seu peso máximo. Levava 38 toneladas de carga, 48,500 litros de combustível e estava pronto para iniciar viagem. A torre de Guarulhos entrou na fonia:

Beta 9923, livre decolagem, pista 09 esquerda, vento calmo.

Struckel respondeu: afirmativo, livre decolagem, pista zero nove esquerda, BETA 9923.

O quatro CFM foram acelerados gradativamente ao máximo e o DC-8 iniciou sua corrida, que levou 40 segundos até a V-R. Ultrapassamos a velocidade de oitenta nós, quando os velocímetros são checados e conferidos por ambos os pilotos. O DC-8 rugia, animado com a iminente volta ao seu elemento natural. Com mais alguns segundos, ultrapassou a V1 de 128 nós (237 km/h), máxima velocidade na qual seria ainda possível abortar a decolagem.

Então, sob o comando de Struckel, orientado por Caminha, que cantava as velocidades desde o asento da esquerda, atingimos a V-R, velocidade em que as forças aerodinâmicas são suficientes para fazer o DC-8 decolar, com 139 nós de velocidade ou 257 km/h. Pesado, o DC-8 teve seu nariz apontado para a noite escura, enquanto se descolava da pista 09. Ganhando mais velocidade, ultrapassamos a V2, ou "safety speed" aos 151 nós (279km/h) e então Caminha recolheu o trem de pouso do Douglas. Eram exatamente 03h53.

O DC-8 subia a 1,500 pés por minuto, carregando quase seu peso máximo. Com autonomia para 05h00 de vôo e alternando o aeroporto do Galeão, subimos para nossa altitude de cruzeiro de 27.000 pés. O PP-BEX, apesar de estar plenamente equipado para operações sob as novas regras RVSM (Reduced Vertical Separation Miminimum), não foi ainda homologado pelo DAC e assim, até conquistar essa homologação, está obrigado a voar abaixo de 29.000 pés, o que aumenta muito o seu consumo. Vinicius estimou em duas toneladas de combustível adicionais apenas para cumprir esta etapa.

Chegamos rapidamente ao nível 270 e então o vôo então entrou em sua fase mais serena. Fiquei a conversar com Vinicius sobre sua carreira, encantado com os causos e histórias de seu tempo como primeiro oficial de 737-200 na Vasp e, depois, no 707-320C da própria BETA.

Atrás da espaçoso cockpit do DC-8, há um pequeno espaço no deck principal, suficiente para dois assentos, um pequeno banheiro e uma galley. A bordo, uma geladeira térmica acondicionava refrigerantes, frutas, gelo e água. Nos compartimentos da galley, estavam à disposição da tripulação sanduiches frios, sopa e café quentes, mais adequados para o horário a para a fria temperatura a bordo de velho cargueiro.

Aos poucos, a leste, uma barra violeta, depois vermelha, foi indicando a chegada da alvorada. O DC-8 voava sereno a Mach 0.74, velocidade econômica de cruzeiro, obtida com 84% de N1, a velocidade medida no fan dos motores CFM.

Observando o dia chegar e ouvindo as histórias de Vinicius, a viagem passou rapidamente. Struckel sintonizou a frequencia de ATIS de Salvador (Automatic Terminal Information Service, um sistema automatizado que transmite continuamente informações relevantes para as operações, inclusive as últimas informações meteorológicas do aeroporto. O ATIS mostrava um notável contraste com as condições ideais na nossa saída de Guarulhos: chuva moderada a forte, vento 180º de 20 nós com rajadas de 30, pista em uso 10. Ou seja, um vento forte e de través aguardava o BETA 9923. Isso seria interessante. As 05h23 iniciamos a descida. Entramos logo depois na camada enquanto o DC-8 descia rumo à Salvador para cumprir a STAR Charlie Uno.

O DC-8 foi sendo configurado para pouso e finalmente, furamos a camada, aviustando com dificuldade a pista em meio à chuva. O vento sacudia o DC-8 sem piedade, fazendo com que Struckel trabalhasse constantemente com pés e mãos, obrigando-o a usar toda a sua experiência para manter o jato alinhado com a pista 10 através da técnica de sideslip, ou caranguejar. Assisti a pista se aproximando pela janela lateral do DC-8, não pelo visor frontal, tamanha era a necessidade de virar o nariz do DC-8 para a direção do vento, de forma a minimizar a forte tendência de desvio.

Cruzamos a cabeceira a mais de 250 por hora, tocando bem adiante do ponto ideal, o que provocou a necessidade de uma vigorosa frenagem do jato, utilizando tudo a que tinha direito. Assim mesmo, o DC-8 só foi parar nos últimos metros da pista. Um pouso muito, muito difícil, executado com maestria. Estávamos no solo as 05h43, depois de 02h10 de vôo gastas para cumprir as 899 milhas entre os dois aeroportos.


Continuamos com nosso CARGO Flight Report na BETA. Vamos embarcar nos vôos BETA 9924 e 9907, SSA-REC-GRU.

Após cumprirmos a primeira etapa deste vôo entre GRU e SSA, chegamos ao pátio de carga do Aeroporto Luis Eduardo Magalhães e cortamos os motores. Rapidamente o DC-8 foi descarregado pelas equipes de solo, que ainda colocaram mais carga paletizada no deck principal. Mais combustível foi colocado nos tanques para o trecho seguinte até Guararapes. Na primeira etapa, nosso consumo foi de 25.123 kg de JP4.

As 06h30 da manhã do sábado, sob chuva leve e 25ºC, Caminha chamou Salvador pedindo autorização para acionamento. O BETA 9924 começava ali. Quatro motores girando, pushback autorizado e iniciado as 06h33. Mais nove minutos e iniciamos o taxi rumo à cabeceira 10. Paramos no ponto de espera e ficamos assinstindo à luta do piloto de um 737-800 da Gol (PR-GIA) para manter sua aeronave no eixo da pista. O jato laranja e brando mais parecia um cavalo de rodeio, protestando para manter-se alinhado. Finalmente, cruzou a cabeceira e desapareceu de nosso visor frontal. Veio a autorização da torre:

BETA 9924, livre decolagem, pista 10, vento de vinte nós com picos de 30, atenção para alerta de windshear nas proximidades.

Struckel alinhou o jato, que para esta etapa teria 30 toneladas de carga e peso de decolagem de 120 toneladas, levando 19.926 litros de combustível, com autonomia de 03h50. Tudo pronto.

Potência aplicada, V1 de 124 nós, rodamos com 132 nós e ultrapassamos a V2 aos 143 nós. Gear Up, flaps up, o BETA subia para 27.000 pés para a curta etapa, 402 milhas náuticas até Recife.

Mesma velocidade de cruzeiro Mach 0.74, sintonizamos no ATIS e obtivemos as condições para Recife: chuva leve, visibilidade 10km, pista 18, STAR Charlie Uno. Desta vez, com o dia já claro, a visibilidade melhorada, Struckel teve menos trabalho para colocar o DC-8 no solo. Pousamos suavemente em Recife as 07h47, cumprindo as 402 milhas da etapa em apenas 59 minutos.

O DC-8 foi "atacado" pela equipe de terra. Funcionários da SATA rapidamente descarregaram o DC-8, levando cada pacote e encomenda de correios para o terminal de carga. Enquanto a tripulação relaxava, aproveitei para desembarcar e fotografar a aeronave, razão da minha viagem. Mas as condições de luz e a chuva intermitente dificultavam meu trabalho.

O aeroporto parecia ser exclusivo da Varig. Ocupavam o pátio o 727-200F PR-LGC da VarigLog, os 737 PP-VTM, PP-VQO e PT-MNL, alé do 757-200 PP-VTT. Todos, menos o cargueiro, saíram durante nossa curta permanência em solo pernambucano.

Sem uma grama de carga, o DC-8 foi reabastecido com 58.000 litros para encarar as 1.302 milhas do vôo de volta a Guarulhos. As 09h07 iniciamos o pushback e com mais quatro minutos, saímos taxiando para a cabeceira 18. Chovia e fazia sol quando Struckel alinhou as 96,3 toneladas do DC-8. Sem carga, a aceleração foi muito mais notável, a corrida de decolagem mais curta e as velocidades menores: V1 120, V-R 124 e V2 de 143 nós. O vôo ferry, de reposicionamento para manutenção em GRU, callsign BETA 9907 começava as 09h18.

Subimos inicialmente para o nível 400, até sermos instruídos por Brasília para descer ao nível 280. A comissaria havia colocado refeições quentes para os tripulantes do BETA 9907, inclusive duas a mais para um mecânico da empresa que estava no vôo e para este "reporter-saco" que vos escreve. Comida de verdade, farta e gostosa, que devoramos com gusto enquanto regressávamos para Guarulhos.

O ATIS informou: STAR Echo 3, pista em uso 09 direita, 19ºC, ajuste altímetro 1032. Iniciamos a descida as 11h52 e as 12h16 tocávamos com suavidade em solo paulista, exatamente 02h58 minutos após decolar de Recife e 08h23 depois de decolarmos de madrugada. Taxiamos para o pátio Juliet e cortamos os motores na posição J05.

No solo, observei mais uma vez, antes de embarcar na Kombi da companhia que nos levaria ao terminal, as linhas esguias, que fazem do DC-8 uma das mais elegantes aeronaves já construídas. Uma aeronave clássica, uma operação redonda, uma jornada inesquecível.

Gianfranco Beting

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