EDITORIAL  |  REPORTAGENS  |  FLIGHT REPORTS  |  AEROPORTOS  |  AERONAVES  |  COMPANHIAS AÉREAS  |  ACIDENTES

 

Mistério no Pacífico

Este é o primeiro Blackbox que escrevemos sem nenhuma frase proferida na cabine de pilotagem. Sem nenhuma gravação que mostre os últimos segundos de vôo. Sem qualquer alarme, indício, suspeita. Apenas o silêncio marca esta tragédia da aviação comercial. Este Blackbox atende a vários pedidos de leitores, que desejam saber mais sobre o maior mistério da aviação comercial mundial: o desaparecimento do Boeing 707 cargueiro da Varig em 1979. O que de fato aconteceu ninguém sabe ao certo. Mas apontamos uma possível causa, que poderia ajudar a explicar porque absolutamente nada, nenhum destroço do cargueiro da Varig foi jamais encontrado. A terça feira, 30 de janeiro 1979, raiou fria mas clara, um típico dia de inverno japonês. No aeroporto de Narita, seis tripulantes da Varig apresentaram-se para serviço. Sua missão era decolar do Japão e voar sem escalas até Los Angeles, primeira parada num vôo que deveria chegar na tarde de quarta-feira ao Aeroporto Internacional do Galeão. Escalado para a longa jornada, o Boeing 707-323, matrícula PP-VLU, que na ocasião tinha 13 anos de serviços prestados. Naquela tarde, o 707 estava sob o comando de uma profissional tão experiente quanto famoso: o Comandante Gilberto Araújo da Silva, mesmo comandante do PP-VJZ, o fatídico Boeing 707 que acidentou-se em 11 de julho de 1973 durante o vôo RG 820. O cmte. Araújo foi um dos poucos sobreviventes desse famoso desastre nos arredores de Paris. Completamente recuperado, Araújo prosseguiu trabalhando no comando de Boeing 707 na Varig, pilotando tanto em vôos de passageiros como em serviços puramente cargueiros como era este que sairia de Narita. Naquela tarde, Araújo comandava o Boeing, secundado pelo cmte. Erny Peixoto Myllius, mais dois primeiro-oficiais, também conhecidos como co-pilotos: Antônio Brasileiro da Silva Neto e Evan Braga Saunders. Dois engenheiros de vôo completavam a tripulação de revezamento: Nicola Espósito e Severino Gusmão Araújo, este sem qualquer grau de parentesco com o comandante Araújo. O Boeing foi carregado até sua capacidade de peso, embora não de carga. O VLU levava uma carga incomum: 153 pinturas do mestre nipo-brasileiro Manabu Mabe, que havia acabado de completar uma exposição de sua arte no Japão. As pinturas foram avaliadas na época em mais de US$ 1,24 milhão. Carga de outras origens, entre elas bens manufaturados, completavam a capacidade do 707, que saiu com seu peso máximo de decolagem, de pouco mais de 151 toneladas. A limitação deu-se não em função de espaço na cabine (cubagem) mas em função mesmo de se ter atingido o peso máximo de estrutural. Afinal, para cumprir a longa etapa de 5.451 milhas (8.773 km) até Los Angeles, havia a necessidade de tanques cheios para garantir autonomia para a travessia. Na chegada à Califórnia, o cmte. Araújo entregaria a responsabilidade de levar o 707 para uma nova tripulação, que então assumiria o vôo sem escalas até o Galeão. A partida foi presenciada por centenas de pessoas e todas concordaram em dizer que o Boeing 707 partiu numa atitude normal, segundos depois perdendo-se em meio à nevoa úmida e fria que cobria Narita naquele fim de tarde. Essa seria a última visão que alguém teria do PP-VLU e seus seis tripulantes. Tomando a proa norte-nordeste, sobre o Oceano Pacífico, o 707 desapareceu sem deixar vestígios cerca de trinta minutos após a decolagem. O desparecimento foi notado pois a aeornave não reportou sua passagem sobre um dos pontos imaginários fixos, usados na navegação e monitoramento de progresso de vôo. O silêncio do PP-VLU despertou suspeitas no controlador, que imediatamente tentou comunicar-se com a aeronave. Após uma hora de tentativas infrutíferas, o alarme foi dado: o Boeing 707 da varig despareçera. O plano de busca e salvamento começou a ser colocado em prática, mas escuridão da noite, fez com que as buscas somente fossem inciadas mais de 12 após a decolagem, ao raiar do dia seguinte. Apesar de todos os esforços, de mais de oito dias de busca intensa, nenhum sinal da aeronave, fossem destroços ou mesmo os corpos dos tripulantes, jamais foi encontrado. Aí está o grande mistério do PP-VLU. Nunca, nem antes nem depois deste acidente, uma aeronave a jato simplesmente desapareceu sem deixar vestígios. Há duas hipóteses: no caso de uma falha grave e repentina, (exemplo: uma explosão a bordo) a emergência teria incapacitado instantaneamente os tripulantes, impedindo-os de sequer enviar uma curta mensagem de emergência. Nesse caso, a aeronave teria caído no mar sem controle, ou em pedaços, espalhando destroços por uma vasta área. Em casos assim, de queda descontrolada, sempre sobram na superfície do mar muitos vestígios da aeronave. Tanto podem ser manchas de óleo, combustível ou fluido hidráulico; materiais isolantes, pedaços de estruturas plástica, leves, que sempre flutuam; ou ainda os próprios restos humanos, que nem sempre afundam imediatamente. Se, por outro lado, a falha fosse séria o bastante para impedir a continuidade do vôo, mas não catastrófica, haveria tempo suficiente para o envio de alguma mensagem de emergência. Mas nada foi ouvido em terra, nem pelas muitas aeronaves voando pelo espaço aéreo japonês. Houve casos semelhantes de jatos que caíram sobre os oceanos. Em todos eles, algum tipo de evidência de catástrofe sempre esteve se fez presente. Por exemplo, em 11 de setembro de 1990, um Boeing 727-200, voando de Malta para o Peru num vôo de traslado, desapareceu no mar. Antes, porém, a aeronave da empresa peruana Faucett, que acabara de cumprir um período de leasing na Air Malta, enviou um pedido de socorro. A aeronave, que havia partido de Keflavik, na Islândia, com destino a Gander, Canadá, enviou uma mensagem de Mayday, captada as 15h20 pelas tripulações de dois vôos, o TWA 851 e o American 35. A tripulação do Faucett avisou que estava descendo, cruzando o nível de vôo 100, com pouco combustível. Na mensagem, os pilotos declaravam que iriam amerissar. Nenhum dos 15 ocupantes foi jamais encontrado. Apenas destroços do Boeing 727 foram dar nas praias de Terra Nova, dias depois do desaparecimento do jato. Outro caso de queda no oceano foi o 747-200 Combi, prefixo ZS-SAS da South African Airways. O Jumbo enfrentou o pior pesadelo que pode assustar qualquer piloto: fogo a bordo. O vôo SA 295 decolou de Taipei as 14h23 do dia 28 de novembro de 1987, com 159 ocupantes e 6 pallets de carga. As 23h49, ainda a leste da ilha de Mauritius, a tripulação declarou emergência, afirmando haver fogo no compartimento de carga do deck principal. Uma descida de emergência para o nível 140 foi iniciada, e logo depois o ZS-SAS foi autorizado para descer para 5.000 pés. A curta resposta do comandante foi a última palavra ouvida pelos controladores de terra. A aeronave em chamas, despedaçando-se, mergulhou no mar, matando seus 159 ocupantes. Em ambos os casos, os pilotos dessas aeronavesse comunicaram, declararam emergência, reportaram problemas. Ou seja, se o problema ocorrido com o PP-VLU fosse efetivamente uma falha grave, que impedisse o prosseguimento de viagem, alguma mensagem de emergência ou pedido de socorro teria sido enviada. E várias estações de terra e aeronaves na área teriam captado o pedido, até porque o 707 deixou de comunicar-se com o solo apenas 30 minutos depois da partida. Em 30 minutos, carregado, com todas as restrições de peso para subir e tráfego para enfrentar, condições comuns na saída de Tóquio, o PP-VLU não poderia ter voado muito longe. Nessa região, ao nordeste de Tóquio, o tráfego é intenso, sobretudo no horário do desaparecimento. Resta somente uma explicação plausível para o desaparecimento do PP-VLU. Esse enigma pode ser melhor compreendido ao estudarmos dois estranhos acidentes, provocados pela mesma causa. O primeiro aconteceu em 1999. Um Learjet 35 decolou da Flórida para um vôo de duas horas, levando o famoso golfista Payne Stewart e mais seis ocupantes. A tripulação deixou de se comunicar com o solo e dois jatos da National Guard decolaram para interceptar o Learjet. Os pilotos dos caças reportaram que as janelas do Learjet estavam cobertas, internamente, por uma fina camada de gelo, mas era possível perceber que os pilotos estavam mortos, ainda atados aos seus assentos. Sob comando do piloto automático, o jato manteve-se a 46.000 pés, até cair, cinco horas depois, no estado de Dakota do Sul, quando acabou o combustível. Descobriu-se o culpado: um adaptador usado para consertar uma válvula de escape de ar (outflow valve) falhou, levando à despressurização da cabine. Em 14 de agosto de 2005, um Boeing 737-400 da empresa cipriota Helios Airways decolou de Larnaca, Chipre, as 09h07 para um curto vôo até Atenas, Grécia. Logo depois, as 09h37, a aeronave entrou em espaço aéreo grego, mas não estabeleceu contato com os controladores de solo. Os controladores gregos entraram em contato com seus colegas cipriotas, que as 10h20 notificaram o controle grego de que os pilotos do 737 haviam declarado "problemas no ar condicionado" logo após a partida. Como subsequentes tentativas de contato com o 737 falharam, as 10h55, dois caças gregos F-16 foram despachados para interceptar o Boeing. Contato visual foi estabelecido as 11h20. Os pilotos gregos, voando a poucos metros do Boeing, reportaram uma visão bizarra: não havia ninguém na cadeira do comandante e o co-piloto estava aparentemente desmaiado sobre o manche. Os F-16 continuaram voando junto ao 737, que mantinha a proa, altura e velocidade constantes. Minutos depois, uma pessoa não identificada entrou na cabine de comando e sentou-se na poltrona da esquerda. O jato então iniciou uma descida, os F-16 ainda voando ao seu lado. O Boeing continuou a descer, e não muito tempo depois, as 12h05, perdeu abruptamente altitude e colidiu, em plena luz do dia, contra montanhas em Grammatikos, um vilarejo 19 milhas ao norte do aeroporto internacional de Atenas, matando os 121 ocupantes. Investigações concluíram que o Boeing 737 sofreu uma quase imperceptível despressurização. À medida que o jato ganhava altitude, o ar em sua cabine ia ficando cada vez mais rarefeito. O problema de "ar condicionado" reportado pelos pilotos, certamente tem a ver com isso. O fato é que o ar ficou cada vez mais rarefeito, levando os ocupantes à uma gradual perda de consciência. Com exceção dessa pessoa que adentrou a cabine de comando (posteriormente identificada como um dos comissários), todos os ocupantes do 737 da Helios morreram lentamente, primeiro perdendo a consciência e depois, a própria vida, asfixiados. O Boeing 737 praticamente voou o tempo todo no piloto automático, até que o apavorado comissário, que tinha algumas horas como piloto privado, assumiu o controle do jato, sem contudo conseguir controlá-lo. Vai daí a nossa única hipótese para o desaparecimento do 707. O PP-VLU pode ter sofrido a mesma falha no sistema de pressurização. Que por sinal, é um problema que ocorre mais comumente do que se pensa - ou do que se divulga. Essa falha pode ter levado à uma lenta e gradual despressurização, incapacitando gradativamente os seis ocupantes do 707. Os tripulantes do PP-VLU teriam desmaiado e, minutos depois, morrido asfixiados. O Boeing teria então voado na mesma proa e altitude, corrigida pelo piloto automático, até ficar sem combustível, mergulhando então em algum ponto do vasto Oceano Pacífico. Se uma falha semelhante à ocorrida com o 737 da Helios ou com o Learjet 35 de Payne Stewart ocorreu no PP-VLU, então o 707 teria sumido a milhares de quilômetros de onde ocorreram as buscas. Vale lembrar que as buscas concentraram-se numa área expandida, plotada sobre a posição do último contato do Boeing com o controle de solo. Isso poderia explicar porque nada foi encontrado, apesar do trabalho incessante de dezenas de embarcações e aeronaves da marinha japonesa e norte-americana. Juntas, elas participaram, nos dias subsequentes ao desaparecimento do Boeing brasileiro, das operações de busca e salvamento. Depois de oito dias, durante os quais até 70 navios e aviões foram utilizados simultaneamente, as buscas foram definitivamente interrompidas. Nestes anos todos, muito se especulou sobre o paradeiro do PP-VLU. Teses fantasiosas brotaram como "explicações". Falou-se muito na possibilidade de um seqüestro praticado por espiões da KGB russa. Sob essa tese, o VLU levava mais do que quadros de Manabu Mabe. Em seus porões haveria códigos de computadores retirados do MIG-25 da Força Aérea Soviética que havia deserdado da base de Saharovka e pousado no aeroporto internacional de Hokkaido, em 1976. Segundo essa tese, o PP-VLU teria sido interceptado pelos russos e obrigado a pousar na União Soviética, para que os códigos não fossem levados aos Estados Unidos. Avião e tripulação teriam desaparecido assim. Seja como for, o caso do PP-VLU entrou para a história como o único jato comercial desaparecido sem deixar vestígios na história. Além de misterioso, o drama do PP-VLU também traz uma carga emocional extremamente forte para os parentes dos seis tripulantes desaparecidos. Somente quem passou pela situação sabe o quão desesperador é não poder enterrar seus entes queridos. A isso se soma o drama da família do comandante Gilberto Araújo. Herói no desastre de Orly, Araújo desapareceu no comando do PP-VLU, um dos raríssimos casos de pilotos de aeronaves comerciais que se envolveram em dois acidentes fatais. Mais um dos fatores que torna o caso do PP-VLU um caso único, um verdadeiro mistério até os dias de hoje.

Gianfranco Beting   

Topo da página