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O mistério dos Cometas Cadentes

Logo após o final da segunda Guerra Mundial, enquanto as nações aliadas ainda festejavam o triunfo sobre o Eixo, uma nova guerra começava a se desenhar: a da supremacia sobre os céus entre os construtores de aeronaves comerciais. Não se tratava de uma nova guerra militar, mas de uma disputa civil, que pelas duas décadas seguintes, seria travada entre as indústrias aeronáuticas britânica contra sua arqui-rival: a poderosíssima indústria aeroespacial norte-americana.

Em jogo estavam bilhões de dólares em vendas e uma posição de supremacia não apenas comercial, como também geo-política. Ao perdedor, as batatas. Ao vencedor, a supremacia em uma indústria de influência global. À nação que saísse vencedora, estariam garantidos literalmente milhões de empregos. Isso sem falar em incontáveis benefícios indiretos, entre os quais a obtenção de uma inestimável cadeia de conhecimento tecnológico,transferível a outros setores fundamentais da economia. Como se sabe, os norte-americanos acabariam por vencer a guerra, ajudados pelo talento (e sorte) de suas gigantescas Boeing, Douglas, Lockheed, Convair, apenas para citar algumas, e outras fabricantes de motores e componentes que virtualmente dominariam os céus do mundo - até os dias de hoje.

O que poucos sabem é que o Reino Unido venceu a primeira batalha dessa guerra. O que pouquíssimos sabem é que o preço dessa vitória seria cobrado, instantaneamente, ao vencedor. E seria tão alto, que varreria não apenas os louros dessa primeira vitória, como cravaria uma estaca no coração das esperanças de grandeza da indústria aeronáutica britânica. Uma verdadeira vitória de Pirro. Uma fascinante história que uniu para sempre o triunfo à tragédia, de forma tão rápida quanto a aeronave que propiciou à Grã-Bretanha a vitória nessa primeira batalha pela supremacia no mercado mundial de construtores aeronáuticos. Essa é a trágica história do primeiro jato comercial do mundo, o de Havilland Comet.

Sir Geoffrey de Havilland e sua empresa, a de Havilland Company, haviam produzido aeronaves importantíssimas no esforço da Segunda Grande Guerra. Dentre as quais, talvez, a mais conhecida seja o Mosquito, a "Maravilha de Madeira" um caça-bombardeiro que ajudou sobremaneira a aniquilar o terceiro Reich. E, pouco antes do fim da guerra, o caça a jato Vampire, que deu à companhia a experiência necessária na fabricação de aeronaves movidas a motores à reação.

Esta foi a principal razão para que a de Havilland Company iniciasse estudos, ainda durante o conflito, para a produção de uma aeronave a jato capaz de cruzar o Atlântico Norte transportando passageiros em vôos regulares. Nascia dessa semente o projeto que levaria ao lançamento, em 1946, do DH 106 Comet. Ele transportaria 36 passageiros numa cabine pressurizada, cruzando a 800 km/h e 40.000 pés de altitude, utilizando quatro reatores Rolls-Royce Ghost. O projeto recebeu ajuda oficial do governo e, debaixo de uma manto de segredo nunca dantes visto, tanto em tempos de guerra como em tempos de paz, sua construção foi iniciada em ritmo acelerado.

O primeiro protótipo voou em 1949. Foi um espanto, nos dois lados do Atlântico: não havia nada parecido, nem que chegasse aos pés do desempenho propiciado pelos motores a jato do Comet. Da noite para o dia, os elegantes Lockheed Constellation, Douglas DC-6 e Boeing 377 Stratocruiser passaram a pertencer à uma geração anterior. O Comet apontava o caminho para o futuro da aviação comercial.

E o futuro chegaria ao grande público em 2 de maio de 1952, quando os primeiros serviços regulares a jato no planeta foram inaugurados, entre Londres e Johanesburgo, com diversas escalas intermediárias. Um sucesso de público e de vendas: a de Havilland começou a ser procurada por empresas de todo o mundo, encantadas com a velocidade, silêncio e capacidade de atração de público que o esguio Comet despertava. Quando, em setembro de 1952, foi anunciado o desenvolvimento do Comet 3, um modelo maior, mais possante, com maior alcance, efetivamente capaz de cruzar o Atlântico Norte, empresas como a Panair do Brasil e a poderosíssima Pan American, assinaram contratos para a compra do promissor quadrijato britânico.

Mas quem estuda os avanços da aviação sabe que uma das lições que a história nos deixa é de que jamais houve um significativo ganho tecnológico que não cobrasse um preço em vidas humanas. A promessa de viagens velozes, seguras e confortáveis que ganhava asas a bordo dos Comet seria duramente colocada em cheque pouquíssimo tempo depois do início dos primeiros serviços regulares a jato da história. Em 26 de outubro de 1952, um Comet 1 da BOAC - British Overseas Airways Corporation - de prefixo G-ALYZ, iniciou a decolagem do aeroporto Ciampino, em Roma, com sua lotação completa. Era noite, chovia e a aeronave estava operando com seu peso máximo. O Comandante Foote iniciou a decolagem normalmente mas, depois de alguns segundos, ao levantar o nariz do Comet, percebeu indícios de um pré-estol: a aeronave atingira 112 nós de velocidade mas não conseguia acelerar mais. Foote abortou a manobra, mas o Comet não parou dentro dos limites do aeroporto. O jato colidiu com um barranco, perdeu os trens de pouso, uma das asas e, descontrolado, arrastou-se por mais algumas centenas de metros até parar. Embora destruído e com seus tanques arrebentados vazando combustível, não houve incêndio. Os ocupantes conseguiram sair da aeronave sem maiores ferimentos físicos, aparte o severo trauma psicológico por que passaram.

As investigações exoneraram a máquina de culpa. Os dedos inquisidores apontaram para "falha de pilotagem" por parte do Cmte. Foote, que teria "erguido demais o nariz da aeronave", aumentando sobremaneira o arrasto aerodinâmico e "efetivamente impedindo-a de ganhar vôo." Umrelatório definitivo das autoridades italianas não foi publicado e, como não houve vítimas fatais, o acidente foi rápida e convenientemente "esquecido" pela mídia e pela própria BOAC. Testes realizados pela de Havilland após o acidente, reproduzindo as condições do mesmo, comprovaram que o Comet apresentava uma tendência a elevar o nariz durante a decolagem. O fabricante incluiu uma orientação aos pilotos nos cursos preparatórios, especificando a natureza do problema, que, de fato, impedia a decolagem, sobretudo com carga máxima. O Comandante Foote foi rebaixado e, a despeito de protestos da associação britânica de pilotos de linhas aéreas discordar da versão oficial de "falha humana", o assunto do acidente do G-ALYZ saiu das manchetes.

Se a história mostra que novas tecnologias sempre cobram um preço em vidas humanas, ela também ensina que o conhecimento das causas de um acidente é o primeiro passo para que se evite a repetição de tragédias aéreas. Essa lição seria esquecida pouco tempo depois da desastrada tentativa de decolagem do G-ALYZ. Na madrugada de 3 de março de 1953, um Comet 1 entrou na pista do aeroporto de Karachi, Paquistão. A aeronave, nova em folha, fazia um longo vôo de entrega e demonstração, uma viagem que seria somada ao esforço do fabricante na divulgação de seu novo modelo. A idéia, sugerida pela de Havilland à operadora do Comet, a Canadian Pacific Airlines, sediada em Vancouver, Canadá, é que a aeronave seria entregue via leste, passando por vários aeroportos no oriente e na Australásia, antes de prosseguir, via Pacífico, para a costa oeste do Canadá.

Sob comando de Charles Pentland, piloto-chefe da Canadian Pacific, o Comet de prefixo CF-CUN acelerou na pista de Karachi nas primeiras horas da madrugada. A bordo iam, além de cinco tripulantes técnicos, mais seis funcionários e diretores da de Havilland, escalados para representar a fabricante do jato na caravana de demonstração do Comet pelo Oriente. O CF-CUN iniciou a corrida com seu peso máximo de decolagem, 52,150 kg e nos segundos seguintes, a mesma condição vivenciada na decolagem do G-ALYZ em Roma repetiu-se: o Comet foi visto por testemunhas correndo na pista com seu nariz extremamente elevado em relação ao horizonte. A aeronave percorreu os 2.288 metros da pista sem sair do chão: passando dos limites finais da cabeceira oposta, colidiu contra uma elevação no alinhamento da pista e explodiu instantaneamente, matando seus onze ocupantes.

O que deveria ser uma demonstração de superioridade da indústria aeronáutica britânica por vários países do oriente, numa fração de segundo converteu-se numa tragédia e num fiasco de relações públicas: em menos de um ano de serviço, dois acidentes, um deles fatal; a Canadian Pacific cancelou a encomenda de outros dois Comet que ainda tinha por receber (somente um, prefixo CF-CUM, acabaria sendo entregue). A exibição do quadrijato britânico, e o esforço de vendas em toda a região foi comprometida com a tragédia de Karachi. As más notícias estavam apenas começando.

Em 2 de maio de 1953, exatamente um ano após o início dos vôos regulares com os Comet, a aeronave da BOAC de prefixo G-ALYV, pousou em Calcutá, Índia, procedente de Rangoon. Era uma tarde quente e ensolarada, prenúncio do verão na Índia. Grandes formações de cumulus-nimbus rodeavam o aeroporto de Dum-Dum. O comandante do vôo, Maurice Haddon, precavido, durante a curta escala foi pessoalmente fazer um briefing com o chefe de meteorologia do aeroporto. Satisfeito com as informações obtidas, retornou ao "flight deck" do Comet e pediu permissão para girar motores e prosseguir viagem até o aeroporto de Palam, em Nova Délhi. As 16h20, o G-ALYV iniciou seu taxi e 10 minutos depois, decolou normalmente de Calcutá, subindo em rota em meio às pesadas formações. As 16h32, o co-piloto do Comet contatou o centro de aérea de controle e informou que estimava chegar em Nova Délhi as 18h50 e que o Comet prosseguia subindo para 32.000 pés. Três minutos depois, o centro de área de Calcutá ouviu o co-piloto do Comet chamar o centro de Nova Délhi. Após o controlador de Délhi responder ao Comet, nada mais se ouviu do jato britânico.

Era exatamente 16h35. Lavradores trabalhando próximo ao vilarejo de Jagalgori ouviram um estrondo nos céus e olharam para cima. A princípio, julgaram ser mais um trovão dos muitos que uma severa tempestade que se abatia sobre a área produzia naquele instante. Para sua surpresa, da base das carregadas nuvens, surgiu uma chuva diferente e macabra: partes de uma aeronave, em chamas, projetavam-se contra o solo e caíam sobre uma vasta área, situada 38 km a noroeste do aeroporto Dum Dum. Em minutos, os até então plácidos campos transformaram-se num mar de destroços metálicos, pontilhados pelos restos humanos de 37 passageiros e seis tripulantes. Era o fim do Comet G-ALYV e mais um brutal golpe nas esperanças de sucesso da de Havilland e da indústria aeronáutica britânica.

Nas horas e dias seguintes, os investigadores reviraram os destroços em busca de um culpado: o "erro humano" apontado nos acidentes de Roma e Karachi já não podia ser o "suspeito habitual" na tragédia de Jagalgori. Estava claro que o Comet havia se desintegrado em pleno ar, mas como isso teria ocorrido? Depois de semanas de investigação, o relatório final determinou que o G-ALYV foi derrubado por "fortíssimas correntes de vento associadas às células que formavam a tempestade". A corte indiana que investigou o caso determinou ainda que "Nenhuma aeronave comercial teria sobrevivido à intensidade das rajadas enfrentadas pelo Comet 1 G-ALYV". A conclusão final foi que a aeronave e seus ocupantes foram vítimas de um desafortunado encontro com as brutais forças da natureza. Pela terceira vez, o orgulho maior da indústria aeronáutica britânica havia sido exonerado de culpa: em Roma e Karachi, falha humana; um Jagalgori, um desígnio divino. Os Comets poderiam continuar a voar e de fato o fizeram, sem maiores complicações por oito meses, até as 10h30 da manhã do dia 10 de janeiro de 1954.

Nesse dia e nesse hora, decolou de Roma com destino à Londres, o Comet 1 prefixo G-ALYP. Essa aeronave era histórica: o G-ALYP havia executado o primeiro vôo regular de passageiros a jato, em 2 de maio de 1952. Naquela calma manhã de inverno, completaria a última etapa da longa viagem desde Cingapura, o principal serviço da malha da BOAC onde os Comet eram empregados. Seis tripulantes, sob o comando de Alan Gibson, conduziam o Comet e seus 29 passageiros rumo à capital britânica, onde deveriam pousar menos de duas horas depois. Após decolar do aeroporto de Ciampino, o jato reportou às 10h50 a passagem no NDB de Ostia e, minutos depois, Orbetello, confirmando que cruzava 26.000 pés e que subia para a sua altitude de cruzeiro. Exatamente as 10h51, o comandante Gibson chamou pelo radio a tripulação de um Argonaut da BOAC, um DC-4 equipado com motores a pistão Rolls-Royce que, apesar de haver decolado de Roma com destino a Londres 10 minutos antes do Comet, já havia sido ultrapassado pelo G-ALYP. O piloto do Argonaut, de prefixo G-ALHJ, comandante J. Johnson, ouviu a tramissão vinda do Comet 1, na qual o comandante Gibson lhe perguntava, utilizando o alfabeto fonético empregado pela BOAC naquele tempo:

"George How Jig" (prefixo G-HJ), "de George Yoke Peter." (prefixo G-YP), "Você recebeu minha..."

Johnson aguardou alguns instantes antes de tentar contato, aguardando a mensagem ser completada. Mas ela nunca seria.

Um barco pesqueiro singrava as águas azuis e plácidas do Mediterrâneo, naquela ensolarada manhã, no través da ilha de Elba. Os pescadores ouviram então um som parecido com um trovão e em seguida, uma série de explosões de menor intensidade. Olharam para cima e viram a mesmíssima cena que os lavradores de Jagalgori haviam presenciado 8 meses antes: uma chuva de destroços, alguns em chamas ou deixando rastros de fumaça, despencando rumo às águas do Mediterrâneo. Em meio ao azul do mar e do céu, numa manhã de tempo perfeito para o vôo, terminava alí a carreira do Comet G-ALYP.

Nas horas seguintes, uma flotilha de barcos saiu de Elba para dar cabo aos trabalhos de resgate. Eventualmente, 15 corpos foram recuperados e examinados pelas autoridades italianas, ajudadas por médicos forenses britânicos. Os corpos apresentavam sinais de súbita descompressão, mas não traziam em sí fragmentos metálicos, que seriam consoantes com a explosão de uma bomba a bordo - hipótese inicialmente aventada pelo governo de Sua Majestade. Os cadáveres também mostravam, todos eles, fraturas de crânio, uma condição que intrigou os legistas. O que teria provocado ferimentos absolutamente idênticos em todos os corpos recuperados? O que teria derrubado um jato novíssimo, com apenas 1.200 vôos e 3.681 horas totais desde que foi entregue? Que fator, que defeito, que destino estaria transformando os Comets em letais cometas, que não apenas voavam a velocidades fantásticas, mas deixavam atrás de sí fulgurantes rastros de fogo e destruição? Essa e outras perguntas não tinham respostas.

Desta vez, não havia a tempestade ameaçadora enfrentada em Calcutá, nem os "erros de pilotagem" de Roma e Karachi. O Comet simplesmente explodiu em pleno ar, numa plácida manhã de céu azul. O que teria acontecido?

Sem respostas, a BOAC suspendeu todas as operações de Comets no dia seguinte à queda do G-ALYP. O governo britânico resolveu intervir, ajudando nas investigações. Afinal, era a indústria aeronáutica britânica, e não apenas a reputação da de Havillando ou da BOAC, que estavam em jogo. Ficou acertado entre o governo e a BOAC que esta retiraria de serviço ativo um de seus Comet, prefixo G-ALYU, que seria transformado num banco de testes. A idéia era usar uma aeronave de verdade para se tentar descobrir se havia de fato algum erro de projeto.

O G-ALYU foi levado aos hangares da Royal Aircraft Establishment, a divisão reponsável pelas investigações e estudos sobre segurança da aviação britânica, localizada no aeroporto de Farnborough. Uma caixa estanque foi construída ao redor do jato, ficando apenas as asas para fora da caixa. Essa caixa estanque foi então cheia de água e, através de um complexo sistema de canos, dutos e bombas de pressão, as autoridades construíram um sistema capaz de simular, em apenas 10 minutos, esforços estruturais equivalentes a 3 horas de vôo. Os testes foram iniciados e se repetiam 24 horas por dia, 7 dias por semana.

Enquanto os testes eram repetidos incessantemente, a frota de Comets era submetida a um rigorosíssimo exame. A despeito dos cuidados e rigores dos exames e verificações, nada de anormal foi encontrado. Assim mesmo, uma série de modificações foram incorporadas ao desenho original, aumentando ainda mais os sistemas de prevenção e de segurança. Por exemplo, reforços metálicos foram instalados nas cavernas que abrigavam os motores. Suspeitava-se que uma falha explosiva em um dos 4 motores Rolls Royce pudesse ter contribuído para a queda de pelo menos uma das aeronaves. Outra hipótese estudada, mas logo descartada, era a de uma eventual falha estrutural decorrente do sistema de pressurização da cabine. Apesar de que a de Havilland haver testado esse sistema de pressurização de cabine exaustivamente durante o desenvolvmento dos protótipos, que sob condições simuladas, "voaram" o equivalente a 18.000 horas de serviço, com mais do que o dobro das cargas encontradas em operações normais, nada de anormal foi encontrado.

Contando aparentemente com todas as medidas de segurança possíveis e imagináveis, o governo britânico e a BOAC chegaram à conclusão que a retomada de operações com os Comet poderia enfim acontecer. Em 23 de março, o certificado de aeronavegabilidade do de Havilland Comet foi revalidado. Vôos regulares foram reiniciados no dia seguinte.

Ressabiado, o público viajante estava dividido: valeria a pena arriscar a própria vida e dar mais um voto de confiança ao grande orgulho da indústria britânica? Ou havia o Comet voado em território desconhecido pela engenharia aeronáutica, pagando um preço elevadíssimo por essa intromissão? Estariam os Comet enfrentando uma maré de má sorte? Ou, como insistiam alguns setores do governo, estariam os jatos sendo sabotados por "potências estrangeiras interessadas em tomar da Grã-Bretanha a supremacia na construção aeronáutica civil"?

A resposta viria na noite de 8 de abril de 1954. Após decolar de Roma, primeira escala de um vôo em regime de code-share entre a BOAC e a SAA - South African Airways, o Comet 1 G-ALYY subia em rota rumo ao Cairo, segunda escala do vôo com destino final Johanesburgo. Comandado por Wilhelm Mostert, comandante da SAA, o jato cruzava o través de Nápoles, a quase 30.000 pés, rumo à sua altitude de cruzeiro de 35.000 pés quando, às 20h05, chamou o centro de controle do Cairo, para dar sua estimativa de chegada à capital egípcia. O centro do Cairo recebeu a mensagem e perguntou aos pilotos do G-ALYY o estimado de chegada. Não obteve resposta: naquele exatos instante, sobre o profundo mar que circunda a região partenope da Itália, o Comet G-ALYY já mergulhava em chamas, despedaçado, do mesmo modo que o G-ALYV em Calcutá e o G-ALYP em Elba.

Nos dias seguintes, apenas poucas partes do jato e 5 de seus 20 ocupantes foram resgatados. Os destroços encontravam-se no leito do mar, a 700 metros de profundidade, o que, com a tecnologia disponível na época, tornava-os inatingíveis.

No dia 12 de abril, o Ministério de Transportes Britânico soturnamente cassou o certificado de aeronavegabilidade de todos os Comet, praticamente enterrando a liderança britânica na disputa pela vanguarda tecnológica. Por determinação direta do primeiro-ministro, Sir Winston Churchill, encontrar o fator causador da queda dos Comets deveria ser buscado a qualquer custo. Churchill determinou isso sem margem à dúvidas, em mensagem dirigida ao parlamento: "A descoberta da verdadeira causa dos desastres com os Comets deve ser obtida sem considerar o ônus, tanto em termos de recursos humamos como recursos materiais."

A marinha britânica foi chamada a resgatar tanto quanto fosse possível dos destroços do G-ALYP, sepultados no leito do mar Mediterrâneo próximo à ilha de Elba. Nas semanas seguintes, uma flotilha recuperou das profundezas mais de 95% do peso da estrutura do Comet. As peças foram lavadas, fotografadas e enviadas a Farnborough e gradativamente, montadas num esqueleto de madeira, reconstruindo a aeronave acidentada como se fosse uma miniatura de montar. À medida que os restos distorcidos do G-ALYP eram colocados juntos, a seqüência de destruição foi ficando evidente. A fuselagem falhou inicialmente na seção superior central. Depois, a cauda separou-se quase que inteiramente. A seguir, toda a parte dianteira da fuselagem e as pontas das asas romperam-se. A parte central da fuselagem, juntamente com os quatro motores e a raiz das asas, pegou fogo e caiu ao mar, separadamente.

O tedioso e minucioso processo de reconstrução desse gigantesco quebra-cabeças começou a mostrar sinais supreendentes. O primeiro deles: alguma peça ou parte da aeronave desprendeu-se e saiu batendo contra praticamente toda a parte superior da fuselagem, atrás das asas, até colidir com o estabilizador vertical, antes deste separar-se da própria fuselagem. Para surpresa dos investigadores, descobriu-se que essa peça na verdade era um poltrona da aeronave. Fragmentos do carpete usado no piso da cabine do Comet foram descobertos incrustrados no bordo de ataque da cauda. Como uma parte do piso da cabine poderia ter colidido com a cauda em pleno vôo?

Outra surpreendente descoberta: marcada no dorso da asa, um longo rastro de tinta azul-marinho, da mesma cor usada na faixa de pintura na linha das janelas e que identificava a pintura da BOAC. Agora não havia dúvidas: uma violenta explosão da fuselagem fez com que um pedaço da mesma fosse arremessado externa e lateralmente, deixando um rastro por toda a extensão das asas, antes que estas se partissem. A cabine do Comet explodira em pleno vôo. Mas o que havia causado essa súbita e violentíssima explosão?

A resposta viria ao final de junho de 1954. Subitamente, zerou a pressão interna da cabine do Comet G-ALYU, a aeronave imersa dentro do tanque de testes em Farnborough. O tanque foi rapidamente esvaziado em busca de uma resposta. A água invadiu o interior da cabine, que falhou estruturalmente ao redor de uma das janelas na parte dianteira da fuselagem. O G-ALYU havia mostrado uma falha fatal com apenas 9.000 horas de serviço, contando o tempo realmente voado e as horas de vôo simuladas dentro do tanque. Um rasgo de 30 cm na fuselagem, numa aeronave pressurizada, teria conseqüências catastróficas. Examinando minuciosamente a fuselagem do G-ALYU, os investigadores descobriram também linhas de fadiga metálica originários dos cortes feitos nas chapas de alumínio para acondicionar as antenas de ADF, situadas na parte superior da fuselagem. O problema é que esta parte da fuselagem do G-ALYP ainda não havia sido resgatada.

Os investigadores redobraram os esforços de busca de partes do G-ALYP no leito do Mediterrâneo. Somente em 12 de agosto teriam sucesso: uma grande parte da seção superior da fuselagem foi encontrada e resgatada. Ao ser examinada, ainda no cais do portro, revelou os mesmos sinais encontrados de fadiga metálica verificados no G-ALYU. A confirmação foi imediata: a fuselagem do "Yoke Peter" havia falhado exatamente nos cortes retangulares feitos na chapa metálica para acondicionar as antenas de ADF. A chapa não aguentou o diferencial de pressão e numa fração de segundo, a fuselagem explodiu, inicialmente para cima e para os lados. Essa súbita explosão explicou também as fraturas de crânio nos 15 corpos resgatados dos destroços do G-ALYP: os ocupantes foram subitamente arremessados para cima, batendo contra o teto da cabine com tamanha força que suas caixas cranianas não suportaram o impacto. O mistério havia afinal sido descoberto.

O culpado: fadiga metálica, originada nos cantos vivos de cortes feitos nas chapas metálicas de revestimento da fuselagem, sobretudo nos cantos vivos, em cortes feitos em ângulos de 90º.

O resultado: as chapas rasgavam-se em pleno vôo. O diferencial de pressão da cabine funcionava como uma bomba, expulsando o ar represado internamente com tamanha força, e por passagens tão estreitas, que o resultado era equivalente à explosão de um balão de ar.

A lição: cortes em chapas metálicas, empregadas nas fuselagens de aeronaves pressurizadas, não mais utilizariam os cantos vivos: é por esta razão que as janelas de aeronaves, por exemplo, são sempre redondas, ovais, ou, quando retangulares, tem seus cantos claramente arredondados, distribuindo melhor as tensões sobre as chapas.

O preço: somados os quatro desastres envolvendo os Comet 1, nada menos que 109 tripulantes e passageiros estavam mortos.

O custo: a derrocada da indústria aeronáutica britânica.

No mesmo mês e ano (junho de 1954) em que os britânicos colocavam num tanque de água seu mais avançado modelo comercial, os norte-americanos colocavam nos céus o prótótipo do Boeing 707, o Dash 80. O quadrijato norte-americano era maior, mais possante, mais veloz, mais capaz de servir o público viajante. Era também mais capaz de gerar lucros aos seus operadores. Mais de 1.000 Boeing 707 foram contruídos. Pouco mais de 100 jatos Comet, em suas versões subsequentes, os Comet 4, 4A, 4B e 4C, colocados em operação a partir de 1958, foram vendidos.

A história mostra que o pêndulo do sucesso balançou definitivamente para o lado norte-americano. Em que pese a excelência do desenho do Boeing 707 e de seu concorrente direto, o Douglas DC-8, pode-se pensar que, se não fosse pela pavorosa seqüência de desastres que destruíram a carreira do Comet 1, talvez a guerra pela supremacia mundial entre construtores civis tivesse outro resultado.

Gianfranco Beting

  

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