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AC621: Tragédia no Galaxy Flight (Air Canada DC-8)

Cinco de julho de 1970. Um maravilhoso domingo de verão, quente e ensolarado em Toronto. O céu azul sem nuvens e a temperatura que subiria até a casa de 27ºC, deixavam os ânimos lá em cima. Naquela manhã, aproximava-se da cidade um jato novíssimo, com menos de dois meses de serviço. Era um quadrimotor DC-8-63. Havia sido entregue pelo fabricante Douglas à Air Canada em 30 de abril de 1970. Contava com apenas 453 horas totais de vôo enquanto aproximava-se do aeroporto. Era um DC-8-63, matriculado CF-TIW. Maior jato da empresa naquela época, operava o vôo AC 621 entre Montreal e Los Angeles, com apenas esta escala em Toronto. Como era costume na época, serviços mais presigiosos recebiam "nomes de fantasia". No caso, o vôo 621 era chamado pela empresa de "Galaxy Flight", pelo fato de levar sempre a bordo muitas "estrelas de Hollywood."

O "Galaxy Flight" daquela manhã decolou as 07h17 do aeroporto de Montreal - Dorval International (YUL), na provícia de Quebéc, Canadá. As portas foram fechadas com 100 passageiros e nove tripulantes. No comando, um piloto experiente e respeitado pelos seus colegas: o comandante Peter Hamilton, veterano da Segunda Grande Guerra. Sua frieza e sangue frio talvez fossem originários das provações por que havia passado no conflito: foi abatido em seu Spitfire e feito prisioneiro em um campo de concentração na Alemanha. Sobreviveu ao fim da guerra e entrou para a antecessora da Air Canada em 1946. Tinha mais de 3.000 horas de vôo no DC-8.

Naquele vôo, Hamilton era secundado pelo primeiro-oficial Donald Rowland, 7.000 horas voadas na empresa sendo 5.500 no quadrijato da Douglas. O segundo oficial trabalhando como engenheiro de vôo era Gordon Hill, com 1.045 horas voadas nos DC-8 da Air Canada. Na noite anterior, a tripulação, baseada em Toronto, havia operado apenas um trecho entre Toronto e Montreal, onde pernoitaram. Havia também seis comissárias trabalhando no vôo, duas delas grávidas. Os nove tripulantes levariam o DC-8 até Los Angeles, onde terminariam a sua jornada.

O domingo de sol radiante deixava a atmosfera ainda mais descontraída no portão 27 do aeroporto. Nada menos que 125 passageiros aguardavam a chegada do vôo 621 para embarcar no jato e prosseguir para Los Angeles. Enquanto aguardavam, alguns olhavam pelas janelas do terminal. Muitos avistaram o jato vermelho e branco que aproximava-se da pista 32: era o DC-8 que iria levá-los à Califórnia. Nos segundos seguintes, quando o jato estava a pouco mais de 20 metros de altura sobre a pista, algo de anormal aconteceu.

Spoilers são superfícies de controle que ficam no dorso das asas. Quando abertos, projetam-se para cima, em posição quase vertical. Criam enorme arrasto e consequentemente, diminuem a sustentação da asa. Portanto, se acionados em vôo, fazem a aeronave perder altura rapidamente. Em solo, os spoilers servem para diminuir a velocidade de corrida durante o pouso.

No caso dos DC-8, a Air Canada tinha ordens claras sobre sua utilização: eles deveriam ser "armados", isto é, destravados e colocados prontos para utilização no início da aproximação final, no momento da realização do check pré-pouso, o "Before-Landing Check."

Na prática, isso nem sempre acontecia. Muitos tripulantes deixavam para armar os spoilers somente no momento do arredondamento final (flare), alguns segundos antes do pouso. Desta forma, raciocinavam eles, a possibilidade de acionamento involuntário dos spoilers durante o vôo seria reduzida. Esse procedimento claramente desrespeitava os manuais de operação. Era um dos famigerados "macetes" que pilotos criam de maneira a, (no entender deles) aumentar a segurança da operação. Ou apenas para torná-la menos trabalhosa.

Até porque os pilotos já haviam percebido que a alavanca de destravamento e acionamento dos spoilers, pela sua maneira de atuar, permitia mesmo que tripulantes, por engano, acionassem as superfícies ainda em vôo. Incidentes sérios com acionamento de spoilers em vôo em aeronaves DC-8 já haviam ocorrido em outras ocasiões. Esses casos apenas "reforçavam" aos pilotos a sensação de que seus macetes eram, afinal, decisões sensatas.

O problema é que macetes não constam de manuais. Não estão escritos e publicados em lugar algum. E qualquer procedimento que fuja aos padrões e normas operacionais, fatalmente leva a diferentes interpretações - sempre com conseqüências nefastas.

O caso a seguir é um perfeito exemplo. Tanto o comandante Hamilton como o primeiro oficial Rowland usavam deste expediente. A diferença é que Hamilton gostava de armar o spoiler somente durante o flare. Já Rowland preferia armar e acionar o spoiler somente em solo. Em vôos anteriores em que os dois pilotos haviam voado juntos, este havia sido motivo de discussão. Como Hamilton era o comandante, sua opinião normalmente prevalecia. Assim, ele sempre instruía Rowland a armar o spoiler com o jato ainda no ar, segundos antes do pouso, e acioná-lo somente após o toque na pista.

Neste vôo especificamente, Hamilton concordou que Rowland poderia armar e acionar os spoilers em solo. Era isso que havia sido combinado no vôo 621. Mas o que nenhum dos dois poderia prever é que um terrível engano de Rowland levaria o vôo 621 a um trágico final. Entraremos agora na cabine do CF-TIW, para ver o que aconteceu com o DC-8 e seus 109 desafortunados ocupantes.

Cap: Comandante Peter Hamilton
F/O: Primeiro-oficial Donald Rowland
F/O-RDO: Transmissão de rádio do primeiro-oficial
S/O: Segundo-oficial Gordon Hill
TWR: Torre do aeroporto de Toronto
APP: Controle de aproximação
DEP: Controle de saída

F/O: Lindo dia.
Cap: Belíssimo.
F/O: Não é alí que o fulano vive? Como chama essa área? High Park?
Cap: Ah.
F/O: Aqueles apartamentos alí, está vendo? Aqueles prédios alí.
F/O: Ah, sim. Linda vista do lago naquela área.
S/O: Ah, mas morar em Toronto é caríssimo. Preços de outro mundo.
F/O: Sim, é caríssimo mesmo. Muita gente ganhou muito dinheiro com isso.
Cap: Acho que sim.

O vôo 621 é chamado pelo controle de aproximação e autorizado a prosseguir rumo à pista 32.

APP: Air Canada 621 está autorizado para o ILS para a pista 32. Curva à direita, proa 230 e 4 milhas para interceptar a final.
F/O-RDO: Entendido, 230.
APP: Você está agora a 3,5 milhas do marcador externo.
F/O-RDO: 621.
Cap: Before landing checklist.
F/O: 2975.
APP: 621 curva a dieita proa 28. Três milhas para o marcador externo.
F/O: Cheque três verdes. Pressão nos quatro. Spoilers.
F/O: Não. (incompreensível) nas verdes.
Cap: Certo. Ok, arme os spoilers então no flare. Eu desisto de lutar com você...
F/O: (risos)
Cap: Eu desisto de lutar com você.
S/O: Painel de combustível checado.
Cap: Obrigado.
Cap: Flap 35.
F/O: Trinta e cinco.
F/O: 142.
APP: Air Canada 621 curva à direita para o 310 para interceptar o curso reverso (back course). Voe na proa 187 e tenha um bom dia.
F/O-RDO: Manterá 310. Bom dia.
F/O-RDO: Torre Toronto, Air Canada 621 em aproximação.

A caixa preta registra o som dos motores sendo acelerados.

F/O: Agora é tarde...
Cap: Sim.
F/O: Surpresa... (incompreensível).
Cap: Landing flap.
F/O: 129.
Cap: 134.5.

A caixa preta registra o som dos motores sendo acelerados.

F/O-RDO: 621 no marcador externo.
TWR: Entendido, 621. Confirme trem baixo e travado.
F/O: Trem baixo.
S/O: Spoilers para armar no (incompreensível).
Cap: Ok, obrigado.

Mais uma vez, a caixa preta registra o som dos motores sendo acelerados.

Cap: (assobiando) Ho Ho Ho... Exatinho no VASIS. Mas estamos um pouco abaixo no glideslope.
F/O: Você está indo bem.
Cap: Vai ser um pouso um pouquinho duro. Olhe para aquela coisa lá na pista.

O comandante refere-se a um jato ainda acelerando na pista e produzindo muita fumaça ao decolar. A caixa preta registra o som dos motores sendo desacelerados.

F/O: Olhe para aquilo. Está deixando uma cortina de fumaça para você, apenas para aumentar a emoção.
TWR: 621 livre pouso, pista 32.
F/O-RDO: 621.
Cap: Meu pouso será por instrumentos agora. Hê hê hê.
F/O: Temos uma verde. Nos VASIS parece que você está um pouco alto, mas aqui mostra você um pouquinho abaixo no glideslope. Vai usar toda a pista desse jeito.
Cap: Ah é!

A caixa preta registra o som dos motores sendo desacelerados. No segundo seguinte, sem se dar conta, o primeiro-oficial Donald Rowland não apenas arma como aciona os spoilers sobre as asas do DC-8. Numa fração de segundo, ele puxa a alavanca para cima e os spoilers são abertos sobre as asas. A sustentação é subitamente perdida e o jato afunda rapidamente rumo ao solo. O comandante Hamilton reage, assustado, aumentando a potência dos motores ao máximo. Essa ação fechou automaticamente os spoilers, mas já aí já era tarde demais.

Cap: Não! Não! Não!
F/O: Desculpe, ah, me desculpe, Pete!

Os 125 passageiros aguardando no portão 27 presenciam um espetáculo horrível. Das janelas do terminal, observam quando o DC-8 da Air Canada afunda e colide violentamente contra a pista. O choque com o solo é tão violento que o DC-8 volta ao ar, como uma pedra que bate na superfície de um lago e ricocheteia. O impacto danifica seriamente a aeronave. O motor número 4, na asa direita, é arrancado. Os tubos de alimentação de combustível que o alimentavam ficam expostos e, com o rigor da pancada, alguma faísca ou curto circuito ateia fogo ao combustível, que vaza sob a asa. Sem saber do vazamento, da perda do motor e do fogo na asa, o comandante Hamilton opta por iniciar uma arremetida. O primeiro-oficial Rowland não se conforma com sua falha.

F/O: Me desculpe, Pete!
Cap: Ok... Perdemos potência!
TWR: Air Canada 621. Percebemos que você está arremetendo. Pode chamar o controle de saída em 199 ou você prefere tentar retornar para a pista 5 direita?
Cap: Diga a ele que vamos arremeter. Acho que está tudo sob controle aqui.
F/O-RDO: Ok torre, vamos arremeter.
TWR: Ok, contate controle de saída.
F/O: Ok, freqüência 199.
Cap: Suba o trem de pouso por favor, Don.
A caixa preta registra o som do trem de pouso sendo recolhido.

F/O: E quanto aos flaps?
Cap: Flap 25.
F/O: Me perdõe... Aquilo foi... (incompreensível)
S/O: Perdemos o gerador do número 4.
Cap: Ok, desligue primeiro o cross-feed. Bom... (incompreensível).
Cap: Você não vai avisar o controle?
F/O-RDO: Centro Toronto. Air Canada 621 arremetendo na 32.
DEP: Air Canada 621 confirme que está arremetendo.
F/O-RDO: Afirmativo.
DEP: Ok, senhor. Por favor, diga suas intenções.
F/O-RDO: Ok. Gostaríamos de iniciar outro circuito para pouso na pista 32.
DEP: Pista fechada... Há destroços na pista. A melhor opção é pousar na 23 esquerda. Vento noroeste com 10 a 15 milhas. Curva à direita proa 070, mantenha 3.000 pés.
F/O-RDO: Curva à direita 070, 3.000 pés.
DEP: Afirmativo 621.

A situação a bordo começa a fugir ao controle. A tripulação do vôo 621 começa a perceber que a aeronave não havia passado incólume ao impacto contra a pista.

Cap: Perdemos o motor número 4.
F/O: Perdemos?
Cap: (incompreensível)
S/O: Combustível. Combustível!
Cap: Sim?
S/O: Combustível. Estamos perdendo!
Cap: Estamos?
F/O: Sim.
Cap: Ok, corte o motor número 4.
F/O: Motor número 4?
Cap: Sim.
F/O: Motor número 3?
Cap: Motor número 4!
S/O: Ok, cortar motor número 4.
Cap: O motor número 3 também está com problemas.
F/O: Está?
Cap: Veja você mesmo.
Cap: Está tudo pifando.

Haviam se passado exatamente dois minutos e meio desde que o DC-8 colidiu com o solo. O comandante Hamilton mal termina de dizer isso quando uma violenta explosão sacode a aeronave. A bordo da cabine de comando, os pilotos do Air Canada 621 agora estão visivelmente assustados.

F/O: O que foi isso? O que aconteceu, Peter?
Cap: É o motor número 4. Algo aconteceu com o motor número 4.
F/O: Oh, veja, nós... (incompreensível).

Seis segundos depois dessa primeira explosão, o combustível em ignição que jorra da asa do CF-TIW adentra um dos tanques da asa direita, que explode. O motor número 3 é arrancado de seu ponto de fixação e despenca ao solo. O DC-8 e seus 109 ocupantes estão condenados.

F/O: Pete, me desculpe!
Cap: Está bem.

Os controladores, alertados pela torre, percebem que a situação a bordo do DC-8 é dramática. Na clara manhã, o jato deixa um rastro de fumaça negra nos céus azuis.

DEP: 621, confirme as condições de sua aeronave, por favor.
Cap: Tivemos uma explosão!
F/O: Ah, nós, veja, nós... (incompreensível) estamos em chamas! Ah, meu Deus.

Os tripulantes tentam de tudo, mas o DC-8 não responde mais aos comandos. Passam-se apenas mais seis segundos, até que o Cockpit Voice Recorder (CVR) agora grava um som ainda mais apavorante: o ruído metálico, altíssimo e agudo, da asa direita partindo-se.

F/O: Nós perdemos uma asa!

Hamilton luta com os controles, tentando manter o DC-8 em vôo. Seu esforço é em vão. O DC-8 inicia um mergulho rumo ao solo. Seu nariz afunda, sua asa esquerda levanta-se em relação ao horizonte. O que resta da asa direita, em chamas, já não produz sustentação para permitir a continuidade do vôo. O jato perde altitude rapidamente e gira sobre seu eixo longitudinal, virando de dorso. O DC-8 despenca rumo ao solo a mais de 350 km/h, num mergulho vertical.

Nesse instante, os gravadores de bordo deixam de funcionar. A gravação chega ao fim. Eram 08h09 da manhã. O DC-8 levaria ainda mais alguns segundos para atingir o solo. Abriu uma cratera sobre uma bucólica plantação de rabanetes próximo à Woodbridge, 11 milhas ao norte do aeroporto. A destruição foi total e instantânea. Uma violentíssima explosão demoliu totalmente a aeronave.

O mais incrível desse trágico acidente é que o local da queda parece exercer um fascínio especialmente mórbido. A cratera aberta pelo DC-8 permanece até hoje lá, coberta por mato. O local, desde então abandonado, é frequentemente visitado por caçadores de "souvenirs." Estes ainda vasculham a área em busca de pedaços do jato. Muitas vezes, sem necessidade de cavar, encontram o que procuram: pratos, talheres e até pedaços de ossos foram recentemente retirados do local, provocando dor e revolta nos parentes e amigos das vítimas.

Meses depois, depois de outros dois acidentes envolvendo jatos DC-8 provocados pela mesma falha que vitimou o AC621, (felizmente sem vítimas fatais), a FAA - Federal Aviation Agency dos Estados Unidos - mandou instalar placas de aviso nas cabines de comando dos DC-8 com a seguinte recomendação: "DO NOT DEPLOY SPOILERS IN MID-AIR" (não acione os spoilers em vôo). O comentário sarcástico dos tripulantes da Air Canada era de que o texto da placa deveria ser: "NÃO DERRUBE ESTE AVIÃO".

A Douglas também executou uma mudança no projeto. O fabricante modificou o acionamento da alavanca do spoiler, incluindo uma trava adicional de segurança, de modo a impedir seu acionamento em vôo. Mas aí já era tarde demais para consolar as famílias das 109 vítimas do trágico "Galaxy Flight."

© Jetsite | Gianfranco Beting

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